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Travessia de São Paulo a Nado

  • Foto do escritor: Pedro Junqueira
    Pedro Junqueira
  • 5 de jul. de 2020
  • 7 min de leitura

Atualizado: 10 de jul. de 2020

ou um pequeno manifesto ecológico


Na sanha do crescimento econômico se perde a noção do óbvio. Um rio proporciona justamente o que se busca com o crescimento econômico, o desfrute da vida. Se sua água é limpa e fresca e se seu leito é natural, ali se nada.
Existem rios fantásticos para se nadar mundo afora. Será que o brasileiro contemporâneo ainda tem noção disto? Quando morei em Washington, nos EUA, uma coisa levou a outra. Nadava em um rio por lá e queria escrever sobre um rio que era fantástico por aqui, mas que não mais o é. A desculpa era a boa e prazerosa natação. Achava que tinha uma história, atemporal, sobre este rio, temporal.
Fast-reverse...

“Moro a menos de vinte minutos de carro da Casa Branca, posso pegar minha bicicleta, pedalar por um rápido quarto de hora, atravessando bairros densamente arborizados e luxuriosamente verdes, e desembocar no rio Potomac. Lá, estaciono a bici ao pé de uma escada de madeira, enfio meus oclinhos e começo minhas braçadas contornando a ilha de Sycamore. Meia hora depois, subo num pequeno deck quadrado no meio do rio, sob o sol quase a pino de fim de verão, e resolvo escrever esta coluna.


De onde estou não vejo ninguém, só a floresta na ribeira por todos os lados, a água, o céu e o ocasional avião. Escuto a sinfônica dos insetos, afinando, e, se me concentro, o ruído contínuo dos carros, ao fundo. Maryland à esquerda, Virginia à direita, DC logo ali. A uns dez quilômetros rio abaixo está o memorial do Lincoln e os turistas, mais um outro quilômetro e na margem oposta se encontra aquele prédio de cinco lados de onde se consome boa parte do orçamento do governo americano. A água do rio, lá pra aquelas bandas, não é confiável. Mas cá onde estou, com bons oclinhos para se evitar surpresas, ela é suficientemente limpa e deliciosamente nadável. Ponho o oclinhos de novo, mergulho e lá vou eu, nadando solto, me retirando do paraíso.


Do Potomac para o Tietê, do século XXI para os anos 20 do século passado. O rio paulista, no seu trecho paulistano, era a pista aquática das corridas de remo. Nas suas margens fulguravam os clubes de regata. E nesses clubes de regata inventavam a natação local, subproduto das necessidades do remo. O melhor lugar para aprendê-la e praticá-la era no rio mesmo, ora bolas, onde já estava a água da natureza.


Dois clubes, em margens opostas do rio, despontavam na liderança deste novo esporte. O Tietê e o Esperia, ambos localizados onde ainda se encontram hoje. Para uma maior eficiência didática e de aprendizado, construíram cochos dentro do rio, atraíram a garotada e passaram a marcar presença ostensiva no visual fluvial. Com o tempo, como todo nadador sabe, as distâncias longas ficaram curtas e o que parecia uma travessia inconquistável se tornou um passeio até a esquina.


E daí nasceu aquela que se tornaria a mais famosa competição paulistana fora do mundo do futebol, A Travessia de São Paulo a Nado. Criado em 1924, este evento ganhou força maior quando passou a ser organizado e patrocinado pela Gazeta Esportiva, em 1932, sob os auspícios do dono da empresa, o jornalista Casper Líbero. Tal foi a popularidade desta prova que, durante os seus anos de vigência, até 1944, a outra competição paulistana, de fim de ano, a Corrida de São Silvestre, também patrocinada pela Gazeta Esportiva, figurava, em relação à Travessia, como acontecimento esportivo coadjuvante na cidade.


O rio Tietê, de água limpa cheia de peixe, servia de clube ou praia para os paulistanos. Havia pesca, passeio, remo, natação, ginástica e saltos. Os clubes oficiais à sua margem, como o Tietê, o Esperia, a Associação Atlética, o Corinthians e o São Paulo daquela época, tinham seus barcos, remadores, nadadores e outros desportistas. O grosso da movimentação esportiva ou de lazer no rio se dava na altura dos dois clubes rivais nas beiras opostas, o Tietê e o Esperia, próximo à atual ponte das Bandeiras.


Quando a competição da Travessia se firmou e ganhou estrutura e formato mais constantes, ficou acertado um trajeto de cinco quilômetros e meio, com a saída lá perto da ponte de Vila Maria e a chegada em frente ao Esperia. O leito do rio seguia um curso sinuoso, margeado por vilas de pescadores e vegetação ribeirinha. A prova, rio abaixo, envolvia uma multivariação de correntezas, larguras de rio e ângulos de curva.


O Trajeto

Fonte: Gazeta Press
Fonte: Gazeta Press

A Travessia chegou a ter perto de dois mil participantes, dos quais uns cento e cinquenta eram mulheres. Estas saíam numa bateria posterior à dos homens. Os jornais da época calculavam em dezenas de milhares os espectadores e torcedores, os quais podiam acompanhar a competição de ambos os lados do rio e em movimento. Os campeões de cada edição anual da prova eram tratados como heróis e merecedores de honrarias. Vários deles foram nossos representantes olímpicos, em 1932, em Los Angeles, e em 1936, em Berlim, como Maria Lenk e sua irmã Sieglinda, Harry Forssell e João Havelange. A Travessia teve efeito propulsor inegável no desenvolvimento inicial da nossa então rudimentar natação no Brasil.


Maria Lenk venceu a prova por quatro anos, de 1932 até 1935, nadando pelo Tietê. Estes foram seus últimos anos morando em São Paulo. No começo de 32, com dezessete anos de idade, pode-se dizer que ela era uma nadadora aprendiz, mas pioneira. Tinha uma única adversária à altura no país, Marina Cruz, de Santos. Lenk ficou famosa por sua audácia, junto com a de seu pai que a incentivou, ao entrar naquele navio maluco que Getúlio mandou para Los Angeles. Lá na Califórnia ela se posicionou perto do último lugar em todas as provas que competiu, mas, inteligente, aproveitou o que pode a estadia, observando cuidadosamente e aprendendo o que era treinar e o que significava ser campeã olímpica. De volta ao Brasil, em poucos meses ela melhorou mais de dez segundos seu tempo dos 100m livre. Entre 32 e 35 Lenk reinou por aqui em todos os estilos, até aparecer a Piedade Coutinho. Quando nadou sua última Travessia, já então quando morava no Rio, Lenk tinha elevado o patamar de nossa natação de aprendiz para o competitivo.


João Havelange venceu a Travessia em 35 e 36. Ele foi nosso melhor fundista nacional, brevemente, durante o ano de 1934, quando nos representou no primeiro Sul-Americano que participamos, em Buenos Aires. A partir de 35, nosso melhor nadador de livre, em todas as distâncias, foi o marujo Manoel Vilar, da Liga da Marinha, no Rio. Mas Havelange, um eterno esportista, de futebol, natação e pólo, dominava os segredos do Tietê como ninguém, representando o Esperia. Em 1942, aos 26 anos, convencido por seu amigo e pupilo Victorio Filellini, ele retornou ao rio.


Havelange e Filellini tinham um plano secreto: vencer a Travessia empatados. O mestre e o aprendiz treinaram juntos por três meses, estudaram o rio, suas correntezas e curvas, e bolaram um estratagema. A Travessia, ao longo dos anos, tinha feito do momento da saída uma verdadeira guerra física entre Tietenses e Esperianos, com direito a tropa de choque e de proteção, se no ataque ou na defesa de suas estrelas principais. Os dois, favoritos e conhecidos, apanharam muito da tropa de choque do Tietê assim que mergulharam das barcas. Ao saírem do sufoco, se viram com mais de cem nadadores à frente. Optaram por um exaustivo detour pela faixa de água mais parada para atacar a liderança. Na reta da Coroa Havelange pregou. Ainda no rastro do líder Filellini, ele conseguiu dar um toque para o amigo seguir sozinho em frente. Filellini sinalizou que aguardaria seu mentor na Ponte Grande, quase na chegada, para executarem a parte final e mais importante do plano. Mas quando chegou lá e deu, pro desespero da torcida, uma paradinha, quem ele viu despontando na segunda posição foi o famoso Paraíba, Antenor Ferreira da Silva, futuro, então, recordista sul-americano dos 1500m livre e amigo e mentor de Tetsuo Okamoto, nosso futuro ainda primeiro nadador medalhista olímpico. Havelange vinha em terceiro. Assim, o combinado não pode ser cumprido. Filellini ganhou seu primeiro título, um pouco acanhado, mas o plano permaneceu valendo para o último domingo do ano seguinte.


A Saída

Fonte: Gazeta Press

Desta vez os dois estavam bem mais tarimbados. No domingo, dia 26 de dezembro de 1943, na hora do tiro de largada da Travessia, a tropa de defesa do Esperia armou uma linha de futebol americano e barrou a tapas, chutes e cotoveladas qualquer avanço Tietense. Ao mesmo tempo, num arco ligeiro típico dos melhores runningbacks americanos, Filellini e Havelange fizeram a fita e foram mergulhar do outro lado da barca. O momento da saída é crucial nas competições de águas abertas. Os dois ganharam terreno e assumiram uma liderança apertada, com mais de cinquenta nadadores no encalço. Mesmo assim, pouparam um pouco até a reta da Coroa, onde o rio alargava e a correnteza era mais sutil. A partir dali, a técnica que tinham desenvolvido, de fechar os olhos e sentir a corrente, e a sobra de pulmão, administrada na primeira parte da prova, possibilitaram o arranque final. Na Ponte Grande a frente dos dois já era de quase cinquenta metros.


Só faltava cruzarem a linha do fim do funil juntos. Mas o diretor da prova, Carlos Joel Nelli, gritou ordenando que estreitassem esta passagem final do funil. Só caberia um. Filellini e Havelange não se deram por menos. Praticamente abraçados, atravessaram a linha de lado, literalmente empatados. Queriam, como era a prática então, que seus respectivos gorros numerados fossem arrancados ao mesmo tempo e fincados juntos na tábua classificatória. Ainda assim um dos juízes de chegada bateu na cabeça de Havelange e gritou: Primeiro! Praticamente junto, outro tapa na cabeça de Filellini: Segundo!


Havelange recusou o título sozinho. Filellini também. Houve uma confusão danada. Nelli e os diretores da Gazeta se reuniram com Havelange e tentaram convencê-lo a aceitar o ouro solitário. Ele ameaçou mandar enfiar a medalha naquele lugar, o qual a Gazeta não poderia divulgar para seus leitores.


No final, nosso mais poderoso futuro cartola internacional venceu a parada. Empate e ponto final. A celebração e as fotos com os dois sendo carregados pela torcida do Esperia entraram nos anais da história do clube. O dramático empate conquistado e não negociado foi emblemático de em espírito de época.


JH e F carregados

Fonte: Centro Pró-Memória Hans Nobiling, do Pinheiros

Mas voltando à busca do crescimento econômico, aquele charmoso rio urbano se tornou um inóspito e desolador canal retilinizado. Nas palavras de Ernesto Rodrigues, que escreveu um livro sobre Havelange: “O Tietê, com o tempo, deixou de cheirar a rio, espantou para sempre os pescadores e, envenenado por esgoto e um colossal despejo de detritos, virou um imenso caldo grosso, fétido e sem vida, retrato da selvagem transformação de São Paulo no maior centro industrial da América Latina.”


“Havelange começou a sentir uma forte dor de cabeça dois dias depois daquele episódio histórico no Tietê, ao visitar a mãe no Rio de Janeiro. Fez exames achando que era tumor no cérebro, mas era tifo, dos violentos. Nos quatro meses que teve de ficar internado, com o tecido intestinal prestes a se romper e sob o risco constante de morte por septicemia, perdeu metade dos seus 85 quilos. Sobreviveu ao tifo com uma irreparável falha no cabelo para se tornar o dirigente esportivo mais poderoso do século XX.


Nenhuma de suas vitórias no mundo do esporte teria o sabor daquele empate.”

A Travessia encerrou sua existência por ali. Casper Líbero morreu num acidente aéreo, no Rio, em 1944. Amanhã volto ao Potomac.”



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