TGS - Sobre Maradona, a Argentina
- Pedro Junqueira
- 26 de nov. de 2020
- 4 min de leitura

Ídolos no futebol precisam ser pelo menos uns quinze anos mais velhos que seus fãs. Precisam estar brilhando como profissionais, jogando e ganhando pelo time de coração de seus admiradores, enquanto estes últimos ainda vivem sua infância e pré-adolescência, levando tudo aquilo a sério. Pra mim Maradona não atendeu a esta pré-condição.
Don Dieguito foi o maior no seu tempo. Sua agilidade, elasticidade e explosão, seu domínio de bola e precisão não encontravam iguais na sua geração. Não adianta forçar na comparação com os nossos grandes no Brasil da mesma época. Assistir Maradona era garantia de atenção presa durante cada segundo da partida, que se tornava, assim, interessante por completo. Mesmo quando não tinha posse da bola, ele continuava no papel de protagonista. Assistíamos para aonde ele se movimentava, porque, como no caso do Michael Jordan, sabíamos que a ele a bola retornaria.
Em 1982 Maradona deu um chute no peito do Batista e foi expulso. Parecia o fundo do poço. As Malvinas se provaram as Falklands mesmo, e a jovem grande promessa falhava feio na hora h. Mas para quem assistiu, há que se confessar: o ato de mau caráter ainda ficou menor que o tamanho do gênio. Em 1986 não precisa falar. Ele venceu o mundo sozinho e recuperou as Malvinas, nem que tenha sido somente na ilusão do jogo. Foi um gênio. Em 1990, em um passe de mágica literal, em um segundo, jogou o Brasil inteiro na mediocridade. Já em 1994, começando a deformar-se, em meio a muito drama, um gol e duas vitórias no bolso, o capitão foi pego no anti-doping. Lá foi ele de vez, despedindo-se como jogador de Copas do mundo.
Maradona, o jogador, fez muito mais, como no Napoli, um time e uma cidade tão menosprezados pela elite de Milão e Turim. Virando esta pesada mesa, dois Scudettos ele conquistou. Mas o que a morte deste craque, e seu papel histórico competindo contra o Brasil e seu drama decadente como pós atleta, me fizeram reviver, por algum motivo, foi uma outra Copa, anterior a todas que jogou.
Em 1978, a melhor, e possível, experiência internacional para um pré-adolescente brasileiro era a Copa do mundo, de casa mesmo. O jornalismo esportivo (leia-se futebol) era a janela para o mundo. Naquele ano Mar del Plata ganhava contornos significativos. Coutinho significava inovação. Zico, o craque da vez. Rivelino, a experiência do campeão. Mal sabíamos...
O fato de que a Copa do mundo era daquela vez na Argentina viria a dramatizar a situação para os brasileiros. Em Copa os argentinos nunca haviam sido páreo pra gente. Mas impunham grande respeito na Libertadores. Parecia assim que nossos vizinhos seriam mais barulho que desempenho. Na hora decisiva resolveríamos, pois o Brasil era o Brasil.
Iniciada a Copa, dava impressão que os jogos dos argentinos eram sempre os jogos do final da rodada, os últimos, já à noite, em Buenos Aires do inverno, sempre no Monumental de Nuñez. A figura do Menotti, magro, alto, cabelos mais compridos, terno escuro e gravata, era uma novidade de técnico quase sombria para os brasileiros. Os jogos da Argentina beiravam a histeria. Aquilo foi em um crescendo e a mídia brasileira começou a fazer as contas para decifrar se cairíamos no mesmo grupo na fase seguinte.
O garoto Maradona, um gênio promissor, foi mencionado algumas vezes, mas para ressaltar que ele havia sido cortado do time argentino na última hora. Os destaques eram o capitão Passarella e o cabeludo, de gestos quase operáticos, Mario Kempes. Nada que não pudéssemos superar quando chegasse a hora, mesmo que dependêssemos dos gols de um pragmático Roberto Dinamite.
Dito e feito, caímos no grupo dos empolgados e estrondosos anfitriões na segunda fase. Nós iríamos para Mendoza, eles para Rosário, mas o confronto direto seria em Rosário, claro, em um estádio caldeirão. E aí a história é conhecida. Foi a Argentina que passou, depois de uma rodada final sui generis. O brasileiro se lambuzou com o jeito argentino de ser.
Coutinho, dando entrevista depois da farsa contra o Peru, acusando o ardil, parecia uma voz solitária em terra estrangeira. Um brasileiro pré-adolescente, deste lado da TV Globo, talvez estivesse capturando os primeiros sinais, do cinza e do chumbo, emanando da ponta do bigode do presidente Videla, sempre de capotão.
Viria logo a final, contra a Holanda. Kempes faz dois golaços impressionantes, argentinos por inteiro, na sua dramaticidade. O Monumental, principalmente na prorrogação, vem abaixo, com aqueles sons e papel picado na tela matizada com a tecnologia de 1978. Aquele dia, por vias tortas, começou minha recatada admiração pela Argentina, por Buenos Aires. Que cidade, bela, passional, trágica, complicada, culta, criativa e decadente.
Maradona foi só um gênio do futebol, com alguns sintomas argentinos. Mas a Argentina de 1978 continuou uma ditadura terrível, desembocou em uma guerra lamentável, e pelos quase quarenta anos seguintes, entre infrequentes altos e frequentes baixos, manteve sua tendência secular de decadência. Um país relativamente riquíssimo e educadíssimo há cem anos, de abundância de recursos naturais, não se resolve enquanto nação, não encontra o caminho do desenvolvimento. Mas faz filmes espetaculares e bobo é o brasileiro que tem pena do argentino.
RIP Don Dieguito.
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