O ano que entra agora marca um século desde o Nobel de Einstein. A Física voava então, em 1921, e não era ainda nem a teoria da relatividade que se premiava. Para um físico ordinário do século XX, Einstein é a maior referência em avanço realizado em conhecimento científico. O Nobel de Einstein resultou, por associação, em conferência de status de gênio para todos aqueles outros que vieram então a se tornar também recipientes deste prêmio na área de ciência. E o próprio prêmio consolidou a partir daí sua condição de pináculo de realização científica humana. Pelo menos era assim até algum tempo atrás...
Quase meio século depois do Nobel de Einstein inventaram o Nobel de Economia. Esta não é a ciência triste, mas, quanto mais macro for sua concepção, mais limitada ao alcance de uma ciência social esta será, além de inextrincável da política, uma costela da política. Tal qual ocorreu lá atrás, no início da expansão científica, com Galileu e Newton, e também com Schumpeter, nesta nova “ciência”, o maior economista histórico ficou de fora do Nobel, pois não há premiação post mortem.
Keynes faleceu quase um quarto de século antes da invenção desta condecoração-mor na sua área de conhecimento. Mas para um economista ordinário do século XX, e do começo do XXI, Keynes é a maior referência em avanço da análise econômica, literalizada em sua obra magna, The General Theory... Afinal de contas, a partir de 2008, setenta anos depois da depressão dos anos 30, de um jeito ou do outro, tiveram que resgatar o demand doctor, o pai do déficit público virtuoso, com inédita e inesperada convicção de aplicabilidade.
Einstein e Keynes, contemporâneos entre si, tomavam o mundo em um abraço, de forma integral, em busca de uma teoria unificadora de todas as forças, de uma macro de todas as variáveis. Gigantes foram em sua inteligência e ambição transformadora. De tal forma, e refletindo os seus tempos e momentos da evolução humana e social, que, muito além da ciência, se envolveram e se posicionaram na política, em debates intelectuais e em questões da própria natureza humana.
Quando Hitler se tornou chanceler, em 1933, Einstein não mais retornou a Berlim, onde morava, e um pouco depois se mudou para Princeton. Pacifista, ele receava a bomba nuclear desenvolvida pelos alemães, e acabou causando a intensificação do foco dos americanos no projeto Manhattan (bomba atômica). Seus escritos não científicos têm um lado mais simples e suas tendências políticas e pessoais eram claras e proclamadas: pacifismo, socialismo, defesa dos negros e dos judeus. Para ele, imaginação vinha antes do conhecimento. Einstein, o violinista, valorizava as artes e sua forma de conexão intuitiva, além do alcance da consciência. Este era o lado complementar e concomitante do cientista.
Já Keynes alardeou, em 1919, que o que fizeram com a Alemanha no Tratado de Versalhes iria acabar mal, e não deu outra. A ele se atribui a condição de fundador intelectual das grandes instituições financeiras multilaterais internacionais do pós-guerra. Era o gestor do endowment do King’s College, em Cambridge. Membro do grupo de intelectuais de Bloomsbury, amigo de Virginia Woolf, casado com uma bailarina russa, Keynes lamentava não ser um artista. Adorava teatro e se tornou um substancial colecionador, e investidor, da melhor arte. Keynes, o economista larger-than-life.
Einstein e Keynes partiram desta vida e a segunda metade do século XX viu a ciência galopar, o liberalismo e a democracia, de um jeito ou do outro, avançarem mundo afora, e o crescimento econômico global, de um jeito ou do outro, se compor. Bem-estar material e liberdade, nesta ordem, como parâmetros protagonistas, e sob algum questionamento, ditaram o caminho existencial, sob a liderança do tio Sam. A tecnologia, filha da ciência, possibilitaria tudo. E a educação, como uma função reação, se adaptou.
No final do século XX, Jacques Barzun, quase centenário, fechou seu livro, From Dawn to Decadence, com uma brincadeira de adivinhação. Depois de mapear por mil páginas a trajetória da Renascença até o Pós-Modernismo, deixando entendido que a humanidade já havia esticado até o limite a sua capacidade de criação e inovação artística dos últimos 500 anos, Barzun arrisca uma fotografia do mundo daqui uns 300 anos. Em meio a uma vida padronizada e automatizada, em meio aos quatrilhões de dados produzidos corriqueiramente na vida futura, algum arqueólogo fortuito das humanidades, que houvesse sobrado então, descobriria as artes que foram produzidas meio milênio antes e esquecidas. Tal qual os renascentistas descobrindo a antiguidade e turbinando a evolução, em 2300 viveríamos uma espécie de pequeno revival das artes de meio milênio antes, aquela monumental a partir do humanismo. Seria isto, com sorte, o máximo que poderia acontecer.
Cá estamos iniciando a terceira década do novo século do novo milênio. A tecnologia tomou conta. Nos transformou a todos e transformou a tudo. A própria ciência hoje só é construída na base de tecnologia intensa. Prêmios Nobel em ciência são prêmios de equipe, e de muitos dados, muito processamento e modelagem. Nada mais ultrapassado que a possibilidade de uma ciência premiada que fosse concebida como a de Einstein, que fosse proposta como a de Keynes. Não sabemos mais tão bem quem são os Prêmios Nobel e também não retemos mais seus específicos avanços em seus micro-campos de especialização. E é irrelevante o que pensam além daquilo que trabalham.
O inexorável avanço da tecnologia traz um milhão de vantagens, principalmente de bem-estar material, e potencialmente de muito mais. Escrever no dia 1 de janeiro de 2021, dia de publicação de milhares de artigos que apontam o caminho e a luz urgente da salvação, requer um pouco de realismo. Hoje é virtualmente idêntico a ontem, e amanhã continuará na mesma toada. Qualquer transformação de fato conquistada será incremental, e por motivações muito pessoais. E o futuro continuará, na melhor das hipóteses, com toda sua abundante incerteza. Dito isto, arrisco notar um pequeno incidente recente, bem no âmbito do Nobel, uma história da elite científica se emocionando, e se emocionando com as Artes, no pólo oposto da ciência contemporânea.
Na época de Einstein e de Keynes, um prêmio Nobel, não científico, que atraia a atenção e determinava destinos era o de Literatura. Este era, e é, um prêmio de muitos contornos subjetivos. Diferente da premiação científica, não há sentido em falar em avanço, e mesmo em pensar em um Einstein ou um Keynes em importância histórica, em Literatura. Teríamos que voltar no tempo alguns séculos e premiar o Shakespeare de cada língua.
Mas o comitê nórdico, nem por isto, deixou de sempre buscar novidades, além de um escopo relevante de obra. Dramaturgos e poetas, além de político e filósofos, já foram premiados com o Nobel de Literatura. E em 2016 foi a primeira vez de um músico e letrista, Bob Dylan, que não foi a Estocolmo apanhar o prêmio, e muito menos fazer seu discurso de recebimento.
A Hard Rain’s a-Gonna Fall é uma canção de 1962. O safo e brilhante músico e letrista, ainda garoto, folk e acústico, tomou emprestado a estrutura de uma balada da fronteira da Escócia. Perguntas em cada recomeço dos versos, um pungente my blue-eyed son, onde, como e quando... e seis blocos e sete minutos de versos narrativos de andanças superlativas no mundo por aí, sob a difícil chuva do título e da vida contemporânea. A letra evoca tudo, menos as virtudes do avanço da tecnologia e da ciência.
Em agosto daquele ano de 62, no Carnegie Hall, dois meses antes de Tom e Joao Gilberto e cia, ali, tornarem conhecido e apreciado o melhor do Brasil, Dylan, com seu pungente “r” original de suas origens, que lembra um piracicabano, em um show de vale tudo, cantou, ainda só acusticamente, os seus 7 minutos de uma música só, e de fama, só que esta última eterna.
Com o passar do tempo muitos também cantaram e tentaram se apossar da grandeza de A Hard Rain’s, inclusive Dylan, que foi piorando cada vez mais sua bela versão original. Brian Ferry talvez tenha sido quem fez a versão transformada mais apreciada da canção. Até a entrega do Nobel de 2016 em Estocolmo, sempre no dia 10 de dezembro, aniversário da morte de Alfred, o Nobel em pessoa.
Perante o rei e a rainha, e grande plateia de alto nível de QI e credenciais acadêmicas, gravatas borboletas e vestidos longos, uma roqueira-punk do East Village, agora quase septuagenária, assume o papel de mensageira de Dylan. O que se passa então pode ser visto como uma intensa, mesmo que passageira, reconexão das artes com as ciências, e a tecnologia. É talvez a mais humana cerimônia do Nobel, que comoveria Einstein e Keynes, e que comoveu os nossos cientistas de hoje.
Cantando e vivenciando a própria letra de A Hard Rain’s, Patti Smith stumbles. Yes, she stumbles... E a redenção terá que ser conquistada, e ser concedida, pelas mãos da ciência, tocada e maravilhada...
Senhores e senhoras leitores, feliz 2021! E com toda a tecnologia disponível nos dias de hoje, façam-me o favor e caprichem no bluetooth:
Kommentare