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Tetsuo, o primeiro

  • Foto do escritor: Pedro Junqueira
    Pedro Junqueira
  • 28 de ago. de 2020
  • 8 min de leitura

Certa feita, nos idos de 1991, aos 27 anos de idade, alguns deles já vividos em ritmo de trabalho de mercado financeiro, me empolguei e resolvi me inscrever em um Master de natação, um dos primeiros. Quando tive que encarar naquela piscina do Pinheiros o Ricardo Ogata, ele ainda em plena forma, me dei conta da minha ingenuidade em fazer aquela brincadeira. Mas foi quando, exausto, me dirigindo de volta à arquibancada da piscina, coincidiu aquele momento que faria minha compreensão do relevante histórico se multiplicar.

Meu pai não sabe muito sobre natação. Mas como tem 30 anos a mais, ele sabe bem aquilo que viveu, e que eu não vivi. Assim é que, pela enorme influência que sempre teve sobre mim, mesmo falando pouco, quatro nomes de nadadores que ele veio a citar, em diferentes ocasiões, dispararam o que eu viria a investigar e saber sobre natação: Piedade Coutinho, Tetsuo Okamoto, Manoel dos Santos e Fiolo. Talvez, por conta disto, do tom da voz do meu pai e do momento e circunstância de cada revelação, estes quatro, pra mim, compõem o que há de mais interessante na nossa natação. Ponto.

Esbaforido pela tunda que levei do Ogata, me aproximei do meu pai na arquibancada, mas era outro o descendente de japonês sobre o qual ele pensava naquele instante, e para o qual ele queria ali me apontar. O que me disse, em tom reverencial, foi mais ou menos o que todo cidadão brasileiro contemporâneo do meu pai, e com noção básica de esportes, teria dito, em tom reverencial: “Sabe quem é aquele? Famoso Tetsuo, medalha de bronze em Helsinque.”

Vi Tetsuo ao vivo, pela primeira e única vez na minha vida. Aquele senhor, de calção, patola, tranquilo, com passo vagaroso, deve ter, com sua aparente gravidade, preenchido imediatamente todos os critérios de minhas expectativas. Que critérios? Bom, algo que condissesse, na minha cabeça apaixonada por história e por natação, com a primeira medalha olímpica na história na natação brasileira, na prova espetacular dos 1500m, na nórdica e longínqua Helsinque.

Em 2008, em cima de muita pesquisa, escrevi sobre Tetsuo seu primeiro perfil que o valha na nossa rala literatura biográfica de nossos grandes. Desde então apareceram vários conteúdos sobre ele, construídos, ou xerocados, a partir daquele perfil. Não vi nada de novo no que veio depois. Assim, reproduzo meu perfil abaixo sobre este nadador extraordinário, em duas partes, neste e no próximo post.

Mas antes vale ainda apenas um complemento sobre a evolução e primazia dos japoneses na natação mundial. Somente em 1928, na olimpíada em Amsterdã, os japoneses surgiram como nadadores competitivos. Já na olimpíada seguinte, em Los Angeles, eles saltaram para o topo do mundo. Sempre craques em copiar e aperfeiçoar, eles passaram a dominar a natação. Mas em 1948, de castigo, pela guerra, foram proibidos de participar em Londres. Como narro no texto, no campeonato japonês naquele ano, quase ao mesmo tempo, houve prova, como os 1500m livre, em que os primeiros colocados marcaram tempo meio minuto abaixo do medalha de ouro em Londres. Em Helsinque, quatro anos depois, o auge de nosso Tetsuo, o pódio ficou composto somente por japoneses ou descendentes de japoneses, cada um de uma nação. Quem gosta de natação sabe que até hoje tem japonês disputando ouro olímpico.


Os Primeiros Anos


Tetsuo, nascido em 1932, cresceu em Marília, SP, em meio à comunidade japonesa que se assentou por aquelas bandas. Seu pai era comerciante na cidade e ele tinha duas irmãs mais velhas. Como garoto, ele era franzino e de cabeça grande e logo recebeu a alcunha de Tachinha, que depois derivou pra Tacha, quando ele encorpou. Sua ida para a piscina, aos sete anos de idade, se deve ao mesmo motivo que levou tantos campeões mundiais para a natação, a mesmíssima asma de sempre.


Nos primeiros anos de prática, a piscina, ou tanque, que ele usava, não tinha azulejos, mas, em compensação, várias rãs frequentavam aquelas águas escuras. Somente aos 15 anos de idade, quando apareceu por lá Fausto Alonso, disposto a montar uma equipe séria no Yara Clube de Marília, é que Tetsuo passou a treinar numa piscina decente, sob a orientação de alguém com algum conhecimento natatório. As sessões diárias não passavam dos 1500 metros e, nos dias piores de inverno, não havia boa intenção que aguentasse muito tempo dentro d’água. Mas Tetsuo perseverou, motivado pela possibilidade de competir e, através da competição, viajar e conhecer outras praias além de seu pequeno mundo.


No final dos anos quarenta sua estratégia começou a surtir efeito. Nos Jogos Abertos do Interior, em Ribeirão Preto, Tetsuo conheceu Anthenor Ferreira Silva, o Paraíba, nadador da Recreativa de Ribeirão Preto. Paraíba, de físico forte, dava uma tunda em Tetsuo nesta época e era campeão e recordista sul-americano dos 1500m livre. Os dois iriam se tornar grandes amigos no futuro. Tetsuo, que nunca deixou escapar a oportunidade de aprender com, e se inspirar nos melhores nadadores que cruzaram o seu caminho, fixou alvo no Paraíba, o único craque a seu alcance naquele interior paulista. Nascia nosso exímio fundista.


Quando chegou o começo de 1949, Tetsuo já tinha galgado várias posições no ranking nacional e, assim, foi escalado para o Sul-Americano em Montevideo, sua primeira competição internacional. Lá, ele nadou as três provas de distância longa, conseguiu entrar nas finais dos 400m e 1500m livre, mas passou longe do pódio e ficou sempre atrás dos outros dois brasileiros, o Paraíba e o pinheirense Rolf Kestener. Mas seu progresso estava apenas começando e, na virada de década, aconteceria o evento divisor de águas de sua carreira de nadador. 


Os Peixes Voadores


Em agosto de 1948, alguns dias depois de terminada a olimpíada de Londres, foi realizado o campeonato nacional de natação japonês. Ausentes, por punição, de Londres, os japoneses quiseram provar que sua supremacia mundial natatória continuava inabalável. Nos 1500m livre, certamente eles demonstraram ser este o caso. Em Tóquio, num estádio abarrotado de torcedores barulhentos, Hironoshin Furuhashi e Shiro Hashizume conquistaram ouro e prata na prova, nadando ambos mais de 30 segundos mais rápido do que o vencedor em Londres, o americano Jimmy McLane.

Em agosto do ano seguinte, no campeonato aberto americano em Los Angeles, os dois japoneses voltaram a dar um show, vencendo todas as provas do nado livre, com exceção dos 100m, e alternando recordes mundiais nas distâncias dos 400m aos 1500m. A revista Time fez uma matéria grande sobre os dois, apelidados então de Flying Fish, detalhando sua técnica revolucionária de batida de perna menos frequente e puxada de mão num ângulo diferente, e sua rotina espartana de treinamentos de 4 a 10km diários. Com as novas informações, o técnico olímpico americano, Bob Kiphuth, previu uma transformação radical na natação mundial.


Pois bem, passados alguns meses, os Flying Fish, agora Peixes Voadores, aterrissaram no Brasil para um longuíssimo tour de exibições, competições e intercâmbio, que qualquer nadador brasileiro da época jamais esqueceu ou esquecerá. A equipe era composta por Furuhashi, Hashizume, dois outros nadadores e o técnico Yusa, ex-campeão olímpico, em Berlim, em 1936, e já íntimo dos brasileiros desde 1940, quando participou do primeiro tour nipônico em nossas terras. O tradutor oficial contratado no Brasil era Minoro Hiranu, que de tradutor iria se tornar nada menos que técnico do nosso futuro recordista mundial Manoel dos Santos.

Entre os nossos nadadores convocados para acompanhar os japoneses, um deles grudou no pé dos campeões para aprender tudo o que podia. Tetsuo participou de várias competições com os Peixes Voadores, assim como também o fizeram outros nadadores de nossa elite. Mas ele foi o único louco a passar a adotar a quilometragem diária dos nipônicos. Dos mil e quinhentos metros ele pulou para os dez mil. Seu raciocínio: “Se eles podem, eu também posso”. Nascia nosso medalhista olímpico.


A passagem dos Peixes Voadores pelo Brasil nunca mais deixou de ser comentada por aqueles que a testemunharam. Foi uma aula incessante em todos nossos principais clubes. Mas a marca principal deixada por eles aconteceu na terra do Tetsuo. Depois de várias bandas receptivas em diversos aeroportos e muitas cerimônias de praça principal e chave do prefeito, os Peixes Voadores chegaram em Marília, capital da imigração japonesa no interior do estado. Lá, senhoras e senhores desconhecedores da história da natação em nosso país, no dia 2 de abril de 1950, os Peixes Voadores estabeleceram novo recorde mundial da prova de revezamento dos 4x200m livre, com o tempo de 8m40s6. Tudo muito bem registrado e oficializado nos anais da FINA. Naquele mesmo dia, Tetsuo, empolgado pelo feito histórico em sua terra e já sentindo o efeito imediato do aumento de sua capacidade de endurance, conquistou seu primeiro recorde brasileiro, nos 400m livre, com a marca de 4m53s1. Nascia o herói e orgulho mariliense.


Salvando o Esporte Nacional


O novo Tetsuo, pós-Peixes Voadores, não parou de melhorar. No campeonato brasileiro de 1950 ele se tornou campeão pela primeira vez e sua popularidade e reconhecimento começaram a crescer, ajudados pelo seu jeito simples, caipira e auto-irônico. Na sequência, o Brasil entrou em depressão profunda com aquele gol do Ghiggia a 11 minutos do final. O restante de nossa já escassa auto-confiança brasileira foi para o bueiro. Mas Tetsuo seguiu em frente.

Em janeiro de 1951, na piscina olímpica do Pacaembu, no Troféu Ângelo Mendes de Morais, uma espécie de campeonato brasileiro interclubes daqueles anos, ele se tornou recordista sul-americano pela primeira vez, na prova que o deixaria famoso. Nadando os 1500m livre em 19m24s3, ele abaixou o recorde brasileiro 40 segundos, roubou de volta dos argentinos o recorde sul-americano, agora 13 segundos mais rápido, e mostrou aos conterrâneos ser possível atingir uma marca digna de disputa de medalha olímpica. Algumas semanas mais tarde ele embarcou para sua mais importante competição internacional até aquele momento, os primeiros Jogos Pan-Americanos, em Buenos Aires.


Em pleno governo peronista, a Argentina acomodou os atletas visitantes num quartel, distante 80 quilômetros da piscina de competição. Fazia frio em Buenos Aires, e neste ambiente inóspito Tetsuo balizou suas expectativas e se convenceu que se classificar para as finais já o satisfaria. Mas, ao cair n’água, a modéstia foi esquecida e a fome de ganhar falou mais alto. Como Piedade Coutinho, Tetsuo era o único outro brasileiro que conseguia reunir forças no longínquo estrangeiro e crescer na hora H, na pressão da olimpíada ou do Pan, no meio daquele sentimento de pequeneza que abate o nadador perante o peso das importantes competições internacionais. Por meio corpo, Tetsuo derrotou nos 1500m livre seu penoso adversário na competição, o mexicano Tonatiuh Gutiérrez, e arrancou mais um segundo do seu recorde sul-americano.

Com o mexicano Tonatiuh Gutierrez

Nos 400m livre, com dois segundos a mais de folga, ele voltou a vencer o mexicano e também o americano William Heusner. Foram os dois únicos ouros do Brasil na natação naquele Pan e em todos subsequentes, até 1967, quando Fiolo acabou com esta secura. E foi quase metade dos cinco ouros que o país conseguiu em todos os esportes em Buenos Aires. Entre os outros três, um era de Adhemar Ferreira da Siva, que juntamente com Tetsuo, representou o mais alto nível do nosso esporte amador nos anos 50.


De volta a Marília, Tetsuo foi consagrado como o grande ídolo da cidade. Os nipo-brasileiros, um tanto em baixa na época de um preconceito mal dissimulado por conta da guerra, agora detinham um dos dois únicos heróis esportistas brasileiros daqueles anos. Foi feriado na cidade, houve desfile de carro aberto e, no fim do dia, de volta pra casa, a surpresa da realidade. Alguns ladrões de galinha tinham aproveitado a festa e feito uma limpa na casa do homenageado. Nada para se aborrecer. A um ano e meio da Olimpíada de 1952, em Helsinque, Tetsuo deve ter pressentido a enormidade do momento por vir. Mas isto fica para o próximo post...

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