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Sozinho, começa a trajetória de nosso Sputnik

  • Foto do escritor: Pedro Junqueira
    Pedro Junqueira
  • 15 de set. de 2020
  • 9 min de leitura

Até pouco mais de uma década atrás não existia história da natação no Brasil. Não existiam registros pesquisados e nem qualquer conteúdo publicado. Nada que fosse além da conversa coloquial, e a conversa coloquial, por mais cativante que seja, não pode ser confiável. Algum senhor diletante e generoso guardava documentos empoeirados em alguma gaveta abarrotada e quase nunca aberta.

Como se o presente fosse mais importante que o passado. Como se as vidas de outrora não fossem tão humanas, e talvez até mais interessantes, do que se passa na vida contemporânea. E como se fosse possível assistir um filme entrando na sala de projeção quando faltam dez minutos pra terminar a película.

Mas na biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, ao lado do Capitólio, se encontrava o registro de quase um século dos principais jornais impressos brasileiros. Um pesquisador, rodando a manivela, navegava os discos de microfilme e, paciente e fervorosamente, construiria a cronologia da história da natação brasileira. Afinal de contas, antigamente, os jornais brasileiros cobriam até campeonato municipal de natação infantil de cidades do interior.

Pois bem, chegando ao ponto, depois de várias décadas de evolução da nossa incipiente e rudimentar natação, quando apenas uma excepcional Piedade Coutinho, ou, um pouco mais tarde, um brilhante Tetsuo Okamoto, alcançaram um nível de desempenho olímpico que já não era mais uma réles satisfação por meramente participar, o final da década de 50 viu o primeiro brasileiro rondando o topo do mundo.

O que Manoel dos Santos fez e alcançou merece ampla biografia e bibliografia. Mas há pouco mais de uma década nem sequer o Manoel, por absoluta falta de acesso, conhecia o filme de sua prova olímpica. Tão pouco era familiarizado com o filme de seu recorde mundial. Assim ele declarou na saleta de sua academia vizinha do estádio Morumbi, em São Paulo.

Hoje, doze anos depois, finalmente correram atrás do prejuízo. Homenagens, artigos, imagens, documentários, trabalhos acadêmicos, vídeos, lives e a medalha e o recorde se encontram disponíveis em um rápido search pelo Google. Que bom! Melhorou, por certo. Mas vale o lembrete que a origem, a base, ou mesmo a história toda que é agora mais divulgada é aquela mesma já produzida em 2008, inspirada e comprovada pelos microfilmes da biblioteca do Congresso americano, pelos documentos empoeirados que algum senhor diletante e generoso havia guardado, pela longa conversa na academia no Morumbi, e por uma vida de curiosidade histórica e natatória incessante.

Assim, com ajustes e algumas extensões, e a riqueza de novas fotos e vídeos, aqui abaixo reproduzo, em sua primeira parte, aquela minha história de Manoel, este nadador de outro mundo. Nos próximos dias seguirão as segunda e terceira partes. Começo com os meus botões:

Consciência

No meio dos anos 70 alguns recordes brasileiros masculinos de natação, na cabeça de uma criança, pareciam eternos. O recorde dos 100m peito do Fiolo alcançava o status de mitológico. Mas o recorde dos 100m livre, prova mais clássica de todas, também tinha ares de inalterável. Ano após ano, as edições do Almanaque Abril mostravam a mesma coisa na sua tabela: 100m livre, 53.35, Ruy Tadeu Aquino de Oliveira, Salvador/Jan.1974. Em todos campeonatos de Troféu Brasil os medalhistas desta prova falhavam em superar os 54s. Djan, um adolescente, vinha dizimando os recordes de fundo. Jorge Fernandes era um pré-adolescente brilhando nos brasileiros infanto-juvenil, o Júlio Delamare. Para mim, o recorde do Ruy era, ao mesmo tempo, a referência de velocidade máxima no Brasil e a referência do suposto início da história da natação relevante no país.


Foi somente com a incremental noção adquirida de que há sempre muito mais a saber do que as aparências indicam que comecei a me dar conta da enormidade de um feito natatório muito antes daqueles tempos. Um pouco menos ignorante, descobri que um tal de Manoel dos Santos, brasileiro, tinha sido recordista mundial da mais conhecida prova de natação, o mais rápido entre todos os seres humanos, com 53s6, no comecinho dos anos 60. Também aprendi que o Ruy tinha aberto o revezamento brasileiro, em Arica, no Sul-Americano de 1972, com 53s4, e que, entre o Manoel e o Ruy, quem havia reinado no Brasil na velocidade havia sido José Aranha, um nadador de biotipo ideal (1m91cm de altura, embora na época altura não era considerada documento na natação), mas azarado com recordes. Aranha nunca bateu o recorde brasileiro, apesar de fenomenais participações neste estilo nas duas provas de revezamento na olimpíada em Munique, em 1972, quando chegou a marcar 52s1, fechando e salvando nosso histórico quarteto que conquistou o quarto lugar no 4x100m livre.

Mas aquele que havia sido o nosso recordista mundial, apesar da minha ciência do feito, permaneceu para mim, por longo tempo, não mais do que um nome português associado àquele recorde extraordinário, conquistado em tempos imemoriais, na longínqua década em preto e branco dos anos 60, época associada à irrelevância na minha soberba ignorância. Eu não podia estar mais enganado. 

Interior


A história de Manoel dos Santos nos remete ao interior do estado de São Paulo, dado geográfico pertinente porque é deste mesmo interiorzão paulista que vieram quase todos os nossos melhores nadadores masculinos até hoje. Tetsuo de Marília, Manoel de Guararapes, Fiolo de Campinas, Prado de Andradina, Gustavo Borges de Franca, e Cesão de Santa Bárbara do Oeste. A curiosidade geográfica aumenta quando se descobre que o pai de Manoel, um imigrante português, era proprietário de um hotel em Andradina que hospedou, durante muito tempo, um casal de gaúchos que migrou para lá, e que, este casal, gerou, entre vários campeões nadadores, um outro brasileiro recordista mundial, o caçula da família, que, pela curta lista acima de grandes do interior paulista, dispensa apresentação.

O pai de Manoel, além de ter gerado um recordista mundial e hospedado os geradores de outro recordista mundial, era dono também de um cinema, onde seu filho garoto obrigava o operador das películas repetir várias vezes as cenas dos filmes do Tarzan nas quais o Johnny Weissmuller dava suas braçadas. Manoel assistia e observava o grande campeão olímpico e tentava imitá-lo na Represa do Ramalho.


Franzino e Interno


No seu quarto ano de vida, Manoel passou a maior parte do tempo em um hospital, se recuperando de recorrentes ameaças de pneumonia e similares que seu mirrado e fragilizado corpo sofria. O pai viu na natação a salvação daquele drama. Antes de completar onze anos, no começo de 1950, Manoel foi estudar como interno em Rio Claro, no Ginásio Koelle, um colégio alemão.

O menino se viu afastado da família, a qual ele só via nas férias e semana santa, quando ele pegava o trem para o oeste do estado. Lá em Rio Claro, na rotina rígida do colégio, Manoel se ajustou bem com o programa natatório. Numa piscina de uns 20 metros, sob a orientação de Bruno Bucci, seu primeiro mestre, ele passou a treinar, competir e fazer parte do time do ginásio. 


O nadador mais forte do grupo era um garoto três anos mais velho que Manoel, chamado João Gonçalves, futuro campeão e recordista sul-americano no nado de costas e atleta multi-esportivo, participante de várias olimpíadas. Mas João tinha um estilo, como nadador, chamado na época de brigador. Na base da força bruta. Por outro lado, a namorada do João, Inge Borg, deslizava na água e era considerada uma estilista, da escola do Weissmuller que inspirava Manoel e que influenciou seu estilo. Era o nado sem arranque de cabeça e de braçadas angulares, simétricas e fluídas.


Em 1955, Manoel dos Santos se aproximou do topo nacional. Seu nado era o costas e seu treino era mais focado neste estilo. Nos 100m livre, estávamos em época de transição na liderança nacional. Nossos três maiores velocistas da virada de década e começo dos anos 50, os cariocas Aram Boghossian, do Tijuca, Sérgio Rodrigues, do Fluminense, e o paulista pinheirense Plauto Guimarães, tinham dependurado as respectivas sungas. O paulista Paulo Catunda e o santista Haroldo Lara eram os mais rápidos agora. Haroldo seria nosso maior expoente até 1957, quando largou a natação, se mudou para a Itália e se tornou cantor de ópera.

Em março de 1955 Manoel foi convocado para sua primeira competição internacional, os II Jogos Pan-Americanos, na Cidade do México. Desde então, a partir dos seus 16 anos de idade, ele encarou estes momentos como representante nacional com excessiva responsabilidade e idealismo de atleta amador daqueles tempos. Atleta amador significava, antes de tudo, ser aquele que ama o esporte, e não tinha a conotação atual de praticante de desempenho inferior, muito menos de inocente. No México, depois de uma viagem de avião militar de carreira, um DC-3, que durou quatro dias, com pernoitadas em Belém, Trinidad e Tobago e Cuba, Manoel competiu muito mal. Sua principal lembrança do torneio foi do momento em que ele saiu da prova desolado, caiu numa bela piscina vizinha de aquecimento e, fingindo estar se soltando, chorou muito, solitariamente, até a última lágrima se perder escondida no meio do cloro.


No ano seguinte, em fevereiro de 56, em Vina del Mar, no Chile, aconteceu a décima-terceira edição do campeonato sul-americano. Das doze anteriores, o Brasil só tinha derrotado a Argentina uma única vez, na mesma Vina del Mar, em 1941. Manoel dos Santos, escalado para os 100m livre, ficou em quinto lugar na final, e Haroldo Lara pegou a quarta posição. Nos 200m costas Manoel ficou em quarto lugar e a prova foi vencida por seu colega de Rio Claro, João Gonçalves.

No revezamento 4x100m livre, a prova teve uma final espetacular. Em primeiro, com recorde de campeonato, em 3m59s7, chegaram os peruanos. Um décimo de segundo atrás, medalha de prata, chegou o Brasil. Os argentinos vieram em terceiro, nove décimos de segundo atrás do Brasil. A equipe de revezamento brasileira contava com Haroldo, Manoel e João, além de Aristarco de Oliveira. Nas tomadas parciais Manoel foi o mais rápido dos quatro. Ele declarou que, naquele momento, ele percebeu que sua especialidade e futuro eram os 100m livre, e o costas era apenas um subproduto. Este clarão, esta consciência de onde residia seu verdadeiro talento resultou, em pouco tempo, num salto de melhora. Quanto ao Sul-Americano, como de esperado, os portenhos levaram o título mais uma vez.


Em setembro de 1956, em dois fins de semana seguidos, no Rio e em São Paulo, Haroldo Lara quebrou e repetiu o recorde nacional dos 100m livre, em piscina de 50m, marcando 57s8, recorde este que estava nas mãos de Boghossian desde 1948. Dois meses depois, na nova e majestosa piscina do Vasco da Gama, Manoel dos Santos não conseguiu obter o índice olímpico para a prova, por dois décimos de segundo. Ele se confortou com o pensamento de que na próxima ele iria.

A participação da natação brasileira na olimpíada em Melbourne, Austrália, representou um ponto baixo na nossa história. Refletindo nosso talento existente entre os anos de 1954 e 1957, não houve um herói salvador, e ficamos de fora de todas as finais. Tal fenômeno se repetiria na segunda metade da década de 80 e na olimpíada de Seoul, em 1988, com exceção do honroso oitavo lugar de Rogério Romero.


O Velocista Se Aperfeiçoa


Em 1957, finalizado o secundário em Rio Claro, Manoel dos Santos se mudou para Santos. A escolha da nova cidade se deveu à entrada na vida dele de Minoru Hirano, seu novo técnico, mestre e quase pai. Hirano entrou pra natação pelas vias do serviço de tradução, exercido durante a estada dos Peixes Voadores no Brasil, em 1950. Foi muito conhecimento natatório adquirido acompanhando e decifrando os olímpicos e recordistas mundiais japoneses.

Manoel foi morar com a família de Hirano e treinar no Clube de Regatas Internacional. O método de Hirano era o equivalente de uma versão antiga de treinamento de velocistas. No fim dos anos 50 a metragem dos treinamentos, mesmo no Brasil, começava a aumentar substancialmente. Hirano foi contra a corrente. Ele fazia Manoel nadar uns mil metros e depois trabalhava perna, posicionamento de braçada, ângulo do queixo etc., e finalizava com uma meia dúzia de tiros de 25m. Muitas vezes ele não podia estar presente aos treinos, e Manoel chegava sozinho para a sessão com um papelzinho na mão ou a sequência decorada na cabeça.


Em dezembro de 1957 Manoel bateu o recorde nacional de Haroldo Lara e o sul-americano do argentino Pedro Galvão, em Santos, em piscina de 25 metros (ainda válido naquele ano), marcando 56s5. Na sequência, em fevereiro de 1958, foi realizado o Sul-Americano seguinte, em Montevideo. Pela primeira vez na história de trinta anos e quatorze edições do torneio, o vencedor dos 100m livre venceu a prova com folga, não na batida de mão, mas com dois segundos e meio de frente ou quase cinco metros de distância. Seu nome, Manoel dos Santos. O único brasileiro até então, além de Armando Freitas em 1939, a conquistar este ouro. A medalha de prata foi para o quase invencível Ismael Merino Martínez, o peruano tricampeão da prova em 52, 54 e 56. O tempo de Manoel nas eliminatórias, 56s6, representou novo recorde sul-americano, já que a partir de 1958, todas as federações internacionais oficializaram a regra de só considerar válidos os recordes em piscina de 50 metros.


Manoel ajudou o Brasil a varrer todos os ouros das três provas de revezamento e conquistar os imprescindíveis pontos duplos destes eventos. Ele não pôde fazer mais porque a prova dos 200m livre foi retirada da programação do Sul-Americano para igualá-la ao programa olímpico. Sylvio Kelly ganhou os 400m livre, João Gonçalves levou as provas de costas e Otávio Mobiglia as de peito e, no feminino, Silvia Bitran venceu todas as provas do nado livre.

Finalmente o Brasil conquistava o título máximo do nosso subcontinente. Esta onda positiva na nossa natação iria crescer a reboque da fenomenal performance de Manoel nos anos seguintes, muito maior que qualquer experiência natatória que o Brasil já tinha vivenciado até então. Não deixa de ser apropriado notar que aqueles eram os anos dourados de JK, o ano da nossa primeira Jules Rimet, os tempos de surgimento da Bossa Nova e, no pequeno mundo dos amantes da natação, a época de nosso Sputnik, Jato, o homem mais rápido do mundo na água.


continua...

1 Comment


Caio Alcantara Stieletrônica
Caio Alcantara Stieletrônica
Sep 16, 2020

Pedro

li e reli seu artigo sobre o Manuel dos Santos.

Agora me atrevo a dizer que você ficará conhecido como a enciclopédia da natação brasileira tão longe você está descendo em detalhes que são os que realmente põe um molho na sua descrição porque na natação são os números que decidem a saber a distancia em metros e o tempo sem segundos e décimos e somente com números fica difícil escrever qualquer coisa interessante mas você ao lado dos números humanizou as histórias de cada um para obter o tal numero desejado e faz realmente um excelente relato da natação brasileira que a gente lê com muito prazer

Abraços

Caio Alcantara

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