Parte III (final) - Da volta ao mundo ao topo do mundo no Guanabara, e em frente...
- Pedro Junqueira
- 9 de out. de 2020
- 11 min de leitura

“It often takes a lot more strength to move on with your life than holding on to a past that no longer is.” – Anônimo historiador raiz
.... De volta do monte Olimpo de Roma, Manoel entrou no período típico de relaxamento pós-olimpíada. Perdeu um pouco a forma. Mas no seu caso e na sua época ainda se fazia valer mais o talento do que uma base de treinamento de ciclo longo. Uma vez na piscina, a recuperação era rápida. O alerta veio numa inesperada derrota de dentro do Brasil. Na azarada piscina do Vasco da Gama, no campeonato brasileiro, no começo de 1961, Manoel ficou com a prata nos 100m livre, marcando 57s8. O vencedor, um segundo inteiro na frente, foi o grande nadador do Paulistano, Athos Procópio de Oliveira, que, além de ter sido um bom nadador do livre, foi nosso melhor costista disparado na primeira metade da década de 60.
A Viagem ao Japão
Os treinamentos voltaram a se intensificar. A motivação para tanto foi a mesma que hoje em dia é parte da rotina de nossos melhores nadadores mas, naquela época, era uma raridade. Manoel foi convidado para participar de uma série de competições internacionais de alto nível, primeiro no Japão, e depois, acidentalmente, nos Estados Unidos. Aqueles anos foram os últimos nos quais a reputação do Japão na natação ainda resultava, anualmente, nos mais talentosos convidados internacionais, principalmente americanos, indo participar do campeonato nacional japonês e de outras competições de exibição durante o verão japonês. Esta tradição vinha desde a década de 30, quando japoneses e americanos dominavam completamente o cenário natatório.
Depois de uma ginástica burocrática e política com os cartolas paulistas, que iria ter seu preço cobrado no seu devido tempo, Manoel partiu para o Japão trazendo consigo Hirano. Lá, ele e o argentino Nicolao, o outro convidado, se juntaram à equipe americana representando o crème de la crème da natação mundial, e partiram para um tour de três competições nas ilhas nipônicas.
Nicolao e Manoel, por solidariedade cultural-continental, mas também por pragmatismo de sobrevivência, foram companheiros próximos durante aquela estada. Como muitas vezes acontece com brasileiros e hispânicos no exterior, um se iludiu no outro a condição de ser bilíngue, quando na verdade a comunicação se dá através de uma outra coisa, um arrastado portunhol.
Mas o que ninguém sabia era que ali, entre os dois jovens latinos, um pouco perdidos no oriente e a reboque dos famosos americanos e japoneses, estava guardada escondida a promessa da metade dos recordes mundiais de velocidade na natação, que em breve seriam revelados para o mundo inteiro de dentro da piscina do Guanabara. Aliás, alguns outros anos depois, um outro brasileiro, campineiro tornado carioca e botafoguense, adicionaria ao mesmo Guanabara, e aos dois países vizinhos, a honra de mais um recorde mundial de velô, em mais um estilo de natação. Seria a consagração dos anos 60 como a década quando três dos quatro recordes mundiais de velô de natação, um em cada estilo, foram estabelecidos naquela piscina, por um brazuca ou por um portenho. Nada mal...
No Japão, Manoel deu conta do recado dele com louvor. Em Tóquio, no campeonato japonês, ele ficou em primeiro nas eliminatórias, semis e final, com os tempos de 55s1, 55s2 e 55s3, respectivamente. O maior velocista americano, Steve Clark, e japonês, Yamanaka, ficaram pra trás. Os 55s1 representaram novo recorde sul-americano.
Naqueles tempos a homologação de recordes levava semanas e, não raro, estes eram quebrados antes de oficializados. Foi o que aconteceu no Japão, porque Manoel levou o ouro também nas competições em Nagóia e Osaka, sendo que nesta última ele abaixou o recorde sul-americano mais um décimo, para 55s cravados, a melhor marca da história até então em competições internacionais.
A viagem ao Japão tornou Manoel conhecidíssimo entre nadadores e técnicos americanos e a imprensa esportiva especializada. Foi a constatação de que aquele furor dos primeiros 50 metros na olimpíada de Roma não era acidental. Aliás, alguns passaram a prever um recorde mundial, caso Manoel melhorasse sua única fraqueza, a complicada virada olímpica daqueles tempos.
Para Manoel, o mais marcante da viagem foi a experiência de conviver com a honestidade e a segurança proporcionadas pela sociedade japonesa. Uma vez ele esqueceu uma sacola dentro de um ônibus. Ao retornar ao veículo, horas depois, ele encontrou o motorista cochilando de cansaço por fazer a guarda daquela bolsa.
Numa outra vez Manoel ficou impressionado com um evento que ocorreu com um outro integrante da equipe de nadadores viajando pelo Japão, o legendário peitista americano Chet Jastremski, criador do famoso estilo homônimo, uma das primeiras estrelas de Doc Counsilman, em Indiana, batedor voraz e sequencial do recorde mundial dos 100m peito na época, inclusive nas competições no Japão, trazendo a marca de 1m11s4 para 1m7s5 num período de seis semanas. Chet esqueceu sua novíssima máquina fotográfica dentro do trem do metrô. Correram para avisar a polícia. Os policiais, tranquilos, pediram somente o endereço do hotel da delegação. No dia seguinte trouxeram e entregaram, em mãos, a máquina intacta de Chet.
Passagem Pelos States
Na volta do Japão, via Los Angeles, Manoel resolveu dar uma parada antes no Havaí. As ondas havaianas sempre exerceram um certo fascínio no imaginário dos brasileiros. Mas Manoel, mesmo sendo Santos sua cidade de treinamentos e mesmo sendo o peixe que era, tem seu DNA adaptado à sua origem, Andradina, no oestão paulista. O resultado foi uma canelada desagradável em uma daquelas pranchas impossíveis.
Vários dias depois, bronzeado, relaxado e destreinado, ele desembarcou em Los Angeles. Dada a sua fama então recentemente adquirida, nosso campeão foi convidado para participar do campeonato americano naquela cidade, e topou a honra. No dia 18 de agosto de 1961, Steve Clark, derrotado sucessivamente por Manoel no Japão, venceu a final dos 100m livre, sob estrondosa torcida. Seu tempo, de 54s4, batia a marca mundial prévia de 54s6, do australiano John Devitt, ouro em Roma, estabelecida lá atrás, em janeiro de 1957.
Manoel não foi de todo mal, mas ficou em quarto lugar, nadando acima de 55s. Ainda dentro da piscina, ele foi fotografado cumprimentando Clark, para sair na edição da revista Swimming World, de setembro de 1961. Só entre os dois, rolou uma promessa ou ameaça amiga. Manoel afirmou categoricamente que, ao voltar para o Brasil, bateria aquele recorde mundial. Clark escutou e não ousou duvidar, como revelaria no futuro. O brasileiro já estava há algum tempo perto demais do topo do mundo para não acreditar ser possível a façanha. Eis aí a diferença psicológica crucial que faz um recordista mundial.

O Recorde Mundial de Hora Marcada
Manoel aterrissou no Brasil, tirou as fotos clássicas, de bouquet de flores na mão, na escada do avião e, sem perda de tempo, partiu para os treinamentos com Hirano. Ao solicitar à CBD e FINA a tentativa de quebra de recorde, ele tornou sua promessa pública e deu um passo a frente com a coragem de quem vai ter que se expor perante a todos. O desafio era nada menos do que provar ser o mais rápido nadador do mundo. Mas a maior pressão e motivação vinha do seu compromisso com três pessoas. Com o técnico Hirano, com seu pai e consigo mesmo.
Na segunda-feira, 18 de setembro de 1961, treinado como nunca antes, Manoel partiu de Santos, de automóvel, como se dizia na época, com Hirano no volante, rumo ao Rio de Janeiro. Subiram a serra, pegaram a Dutra, e, às tantas, Hirano só pode ter entrado em algum posto de gasolina para abastecer seu Ford 47. Manoel, com certeza, aproveitou para ir ao banheiro, e quem sabe tomar um cafezinho. O frentista chegou na janela: “Completa doutor?”. Hirano: “Pode completar, da azul.”. O frentista, sendo tal, pode ter puxado a conversa: “Vai até o Rio?” Ao que Hirano deve ter concedido a graça: “Sim, este rapaz que está comigo tem que ir lá resolver um probleminha. Bater o recorde mundial da prova mais rápida da natação. Eu sou só o técnico.”.
Um pequeno parêntesis. O Rio de setembro de 1961 ainda era o Rio capital, para todos os efeitos que interessam. Havia um mês exato que o presidente da república, lá da poeira de Brasília, blefando, havia renunciado. A renúncia foi prontamente aceita. Este presidente, sem qualquer noção cosmopolita, chamava o Rio de balneário. Ignorava a evolução e importância da cidade, nosso pedaço respeitado e admirado no resto do mundo. A rua Direita, a rua Larga, a rua do Ouvidor, a avenida Central, nunca tiveram nada de balneário. Já a nova capital criada por Juscelino no planalto central, apesar da empolgação arquitetônica, herdou todos os vícios do Rio capital, mas nos condenou ao terceiro mundo. Mas em 1961 o estrago ainda não tinha sido feito.
No Rio, Hirano e Manoel se instalaram por conta própria no clássico Hotel Paysandu, no Flamengo, onde havia se hospedado a seleção uruguaia em 1950, inclusive na noite de véspera do Maracanaço. Estavam preparados para gastar duas diárias cada um, além das refeições de prato feito do hotel. Nos jornais estava anunciado a data da tentativa para terça-feira, no Guanabara ou Vasco da Gama. Mas o dia seguinte acabou sendo usado para treinamento e adaptação na preferida piscina vizinha ao Mourisco. O dia D foi marcado para quarta-feira, 20 de setembro de 1961.
No dia 20, um pouco antes das 4h da tarde, os dois chegaram no Guanabara. Manoel, barbado, uma cisma dele, como dizia. As dependências do clube estavam quase desertas. Ele aqueceu, deu seus tiros de 25, e foi pro vestiário para uma rápida massagem, executada pelo técnico. Ao sair do vestiário, a ficha caiu. Três mil pessoas apareceram do nada, lotando a pequena arquibancada e os arredores da piscina do Guanabara. Ainda em tempos de ternos e até algum chapéu, a vasta torcida que surgiu parecia querer checar se aquilo era de verdade mesmo.
Neste momento, perante tal plateia, Manoel deve ter decidido, um pouco inconscientemente, que usaria a primeira tentativa pra acalmar os nervos. Afinal, ele tinha três chances. Mas como ele racionalizou tal decisão foi com a desculpa do encaixe da virada, seu ponto fraco. Bater a mão na borda e dar a cambalhota olímpica, sem oclinhos, nas águas turvas do Guanabara, era como acertar precisamente a faixa inicial do salto triplo. Para Manoel, era necessário mais de uma chance.
E assim foi. Na primeira tentativa ele ficou na virada. Sob um silêncio do público duvidoso, ele desceu novamente pro vestiário com Hirano, um pouco arrependido pelo bom tempo de passagem nos 50 metros. Mas aquilo surtiu tanto o efeito relaxante desejado como a raiva necessária.
Com todo o apoio psicológico de Hirano, Manoel voltou pra piscina quinze minutos depois, lá pelas 5h da tarde. A torcida, um pouco constrangida, calou-se como num enterro. Dado o tiro, Manoel largou de chapada na raia 4, fotografia dos jornais no dia seguinte, virou sem percalços os 50m em 25s6, levantou a torcida nos 75m em 38s5, e bateu na borda de chegada com um tempo incógnito a todos, por alguns segundos.
O grupo de cronometristas oficiais era composto pelo triunvirato da natação brasileira, os conselheiros técnicos Júlio Delamare e Maurício Beckenn e o cartola Ruben Dinard de Araújo. Após um breve momento de consultas entre os juízes e apreensão geral do público e do herói dentro d’água, Delamare empunhou o revolver para cima e, com três tiros de festim, confirmou a nova marca mundial, 53s6.
O Guanabara entrou em delírio. E aí, o momento mais emocionante da carreira de Manoel se deu a seguir. Escondido entre o público presente, tendo viajado sorrateiramente lá de Andradina, depois de negar sua presença no dia da tentativa, surgiu de surpresa o pai de Manoel. Numa fotografia, ou flagrante, como diziam, está registrada a grande felicidade do filho, abraçado ao pai, de um lado, e ao técnico e mestre, do outro (ver vídeo abaixo).
O recorde mundial viria durar três anos exatos, até ser batido pelo francês Alain Gottvalles, apesar deste ter ficado em quinto lugar na final olímpica em Tóquio, em 64. Como recorde brasileiro e sul-americano, a marca de Manoel durou quase onze anos, até ser batida por Ruy Tadeu A. De Oliveira, em Arica, em 1972, longevidade esta que superou as seguintes de Jorge Fernandes e Gustavo Borges, e só foi mais curta do que a de Zorilla na década de 20 e 30, e, neste exato momento, a de Cesão, que completa agora onze anos, e como recorde mundial.
A repercussão nacional e internacional do recorde no Guanabara foi imediata, desde as matérias da Gazeta ou reportagem da Manchete, até a cobertura na imprensa francesa, liderada pelo L’Equipe. Técnicos e nadadores nos Estados Unidos, incluindo Clark, e Japão se mostraram pouco surpresos com o tempo de Manoel, de certa forma esperado por todos. Não faltou quem o comparasse a seu grande ídolo de infância, Johnny Weissmuller.
Compromissos da Fama
Ainda no dia seguinte do recorde no Rio, Manoel teve que esticar o orçamento e entrar na terceira diária do Hotel Paysandu. Vieram os anúncios de homenagens e convites. Ele esteve na Marinha e na Escola Nacional de Educação Física. Belo Horizonte, Santos, Recife e Fortaleza requisitaram a presença do recordista. Rio e São Paulo ameaçaram lotar a agenda do nadador. Manoel só queria saber de ir pra Andradina comemorar com a família e amigos, e foi o que ele fez. Logo ele aprenderia a dura realidade da politicagem brasileira, com suas passagens aéreas e diárias de hotel prometidas mas nunca pagas ou restituídas.
Alguns compromissos eram inevitáveis. Na semana seguinte ao recorde mundial, Manoel voltou ao Rio, desta vez de avião, com passagem mandada pelo próprio presidente da república, para as cerimônias de abertura dos Jogos de Primavera. Quem foi buscá-lo no aeroporto, de kombi, foi Maria Lenk. Uma cena de emocionar a imaginação: nossos dois recordistas mundiais, Maria Lenk, aos 46 anos, no volante e, ao lado, Manoel dos Santos, com menos da metade da idade da motorista, margeando pela avenida beira-mar.
No Fluminense, levaram Manoel à tribuna de honra, para cumprimentar Jango. Mas como o nadador estava de camisa de manga, sem gravata e paletó, os aspones do presidente ameaçaram impossibilitar o encontro. Percebendo que quem sairia perdendo seria o próprio Jango, deram o famigerado jeitinho brasileiro e, logo em seguida, os fotógrafos registraram o aperto de mão entre nosso recordista e nosso presidente parlamentarista.
Em São Paulo, sem ter entrado na piscina por uma semana, Manoel foi ao Palmeiras bater o recorde paulista (não existia o brasileiro) dos 50m livre, em frente dos jornalistas, a pedido do homem forte da Federação Paulista, Nicolini, que tinha ajudado a viabilizar a ida de Hirano ao Japão no ano anterior (lembram?).

Com o tempo, a fama e o sucesso atraíram outros famosos. Manoel conheceu Weissmuller nos Estados Unidos e orientou Pelé, seu vizinho e amigo em Santos, ajudando-o a passar num teste de natação, dentro de uma prova de admissão para um curso de Educação Física. Mas o fôlego de carregar esta vida de notoriedade e bolso vazio tinha limites. Seus ganhos totais de toda carreira de atleta amador somaram cinquenta dólares, agraciados por Paulo Machado de Carvalho, chefe da delegação brasileira de futebol nas copas de 58, 62 e 66, durante um encontro do acaso num hotel no exterior.
A frase famosa de Manoel dizia tudo: “O que adianta ser recordista mundial e ter de pedir dinheiro ao pai para levar a namorada ao cinema?”
O Adeus Em Forma
Veio então a última participação internacional do nadador. E que participação! Em fevereiro de 1962, Manoel foi a Buenos Aires ajudar o Brasil arrancar o tricampeonato sul-americano de dentro da casa dos argentinos. Nos 100m, 200m e 400m livre o duelo com Nicolao foi sensacional, com o argentino vencendo nas últimas duas por batida de mão e estabelecendo novos recordes sul-americanos. As pratas de Manoel, com os tempos de 2m7s3 nos 200m e 4m39s8 nos 400m, lhe valeram recordes nacionais que duraram quatro e dois anos respectivamente.
Nicolao, protagonista de um quid pro quo quase trágico na olimpíada de 1968, no México, foi a grande estrela do campeonato e deu sinais do recordista mundial de borboleta que estava para brotar na semana seguinte, no Guanabara, com grande apoio de Manoel. As provas de revezamento decidiram o campeonato e o Brasil levou os três ouros masculinos, em provas disputadíssimas com a Argentina, com Manoel sempre fechando para os brazucas. O Sul-Americano de Buenos Aires mostrou o topo de sua forma, certamente do ponto de vista aeróbico.
Depois, o Pan de 1963, apesar de ter sido em São Paulo, provou estar além de sua paciência e flexibilidade financeira de atleta amador. Com 23 anos recém completados, Manoel foi trabalhar com o pai e começar a ganhar a vida, princípio familiar inquestionável em sua cabeça. Bola pra frente! A nós, brasileiros admiradores da natação, ele deixou esta singela história de conquistas acima dos nossos horizontes. Fica aqui o meu registro deste super atleta. Mas antes..., não deixem de assistir abaixo:
....com efêmera participação minha (camisa quadriculada), segue abaixo o vídeo do Globo Esporte com pedaços, muito bons, da filmagem do recorde mundial no Guanabara, em setembro de 1961, além das melhores cenas do bronze olímpico de Manoel, em Roma, no ano anterior. O Guanabara deveria ser nossa Meca da natação, desde sua esplendorosa e pomposa inauguração no Sul-Americano de 1935, presenteando o país com a primeira piscina olímpica por cá. Hoje, aquela piscina, onde nem se acha mais as placas comemorativas dos recordes mundiais ali estabelecidos, não compensa a descrição. É a cara da qualidade da manutenção de nosso patrimônio histórico. Incrivelmente belo foi. Concentrado na cidade do Rio de Janeiro.
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