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O Primeiro Campeonato

  • Foto do escritor: Pedro Junqueira
    Pedro Junqueira
  • 16 de jul. de 2020
  • 6 min de leitura


O campeonato sul-americano de natação de 1935 começou com grande alvoroço na piscina do Guanabara, na então capital  federal, o Rio de Janeiro. No dia seguinte da noite inaugural do torneio, estampadas na primeira página do Correio da Manhã, principal jornal da cidade, apareciam duas vastas fotografias do desfile de abertura mostrando, em destaque, as elegantes atletas brasileiras e argentinas ao redor da piscina, vestindo salto alto e saia comprida. Parte do festejo pomposo era a celebração da primeira participação da ala feminina no certame. Outra razão do sentimento de importância reinante era o fato de que aquele era o primeiro Sul-Americano no Brasil, a primeira competição internacional de natação de respeito que acontecia em nosso solo.


As acomodações da piscina do Guanabara ficaram lotadas durante a semana inteira do torneio, naquele mês de abril. Pelas fotografias da cobertura, a sensação é quase claustrofóbica em meio a tanto terno e chapéu rodeando as bordas da piscina. Esta piscina, nossa primeira olímpica, inaugurada um pouco antes, iria gerar no futuro controvérsias frequentes por causa da consistência mais salinizada de sua água, vazada da vizinha enseada do Botafogo. Mas a piscina do Guanabara também iria provar, ao longo das décadas seguintes, ser a piscina de maior importância histórica da natação brasileira, palco de três recordes mundiais masculinos, em três estilos, durante os anos 60. Deveriam tê-la tombado. Talvez tivesse assim escapado de destino de tanto mal trato e esquecimento.


Nossos principais adversários, como não poderia deixar de ser, eram os argentinos. Os platinos, na verdade, eram melhores e favoritos ao título. A Argentina da década de 30 era um país rico e isto também se refletia na natação. O legendário Alberto Zorilla tinha faturado o ouro nos 400m livre, na olimpíada de 28, em Amsterdam. No primeiro Sul-Americano, em 29, em Santiago, ele tinha ganho quase todas as provas e, em abril de 35, era ainda o recordista vigente dos 100m, 400m e 1500m livre, sendo que o recorde dos 100m, 1m0s6, era de 1925. Em 32, na olimpíada de Los Angeles, a participação argentina foi menos medíocre do que a brasileira, e no segundo Sul-Americano, em 34, em Buenos Aires, eles voltaram a ganhar quase todas as provas. Em 35, eles tinham um sólido revezamento masculino nos 4x100m e 4x200m livre, condição sine qua non  para quem quisesse pontuar bem no geral no campeonato. Finalmente, naquela competição no Guanabara, iria se presenciar o florescer da maior nadadora olímpica sul-americana de todos os tempos, uma argentina é claro. No Rio, a bela Jeanette Campbell iria destroçar seu próprio recorde sul-americano dos 100m livre, baixando a marca de 1m12s0 para 1m08s0. Pouco mais de um ano depois, na Berlim olímpica de 36, ela quebraria o recorde mais três vezes, concluindo a trajetória com os 1m06s4 da medalha de prata da final. Passariam quase três décadas para seu recorde continental fosse quebrado. Jeanette nadaria até 39, quando, como era costume então, ela se casou e encerrou sua breve carreira.

No vídeo abaixo podemos ver Jeanette na espetacular final olímpica dos 100m livre na Berlim nazista de 36. Ela é a segunda, de cima para baixo. Não sai muito bem, mas vira quase em primeiro. Na volta, com mais de três quartos da prova nadada, ela assume a liderança. No finalzinho, a holandesa, ao lado, que veio por trás, leva o ouro por batida de mão, ficando a prata com Jeanette.


Do nosso lado, as esperanças no Guanabara não eram poucas. Apesar de termos um time masculino com menos estrelas, as que possuíamos eram promissoras. Nosso maior nadador era Manoel da Rocha Villar. Veterano da olimpíada de 32 e do Sul-Americano de 34, Manoel foi talvez nosso maior nadador da década de 30. Ele foi recordista brasileiro de todas as distâncias do livre, dos 100m aos 1500m. Nosso segundo talento masculino era Benevenuto Nunes, grande costista nacional na primeira metade dos anos 30. Benevenuto teve uma carreira simultânea com a de Manoel, passando pelas mesmas competições internacionais. Os dois, juntamente com Isaac Moraes e Antônio Luiz dos Santos, o Mosquito, peitista, formavam quase que integralmente nossa elite natatória daqueles anos. O ponto comum entre os quatro era que todos eram marujos. A Liga de “Sports” da Marinha foi a vanguarda da natação brasileira até 1936. Talvez a principal razão deste domínio tenha sido a contratação, pela marinha, por um ano, em 34, do técnico japonês Takashiro Saito. O Japão dominou a natação masculina nas olimpíadas de 32 e 36, e Saito comandou vários dos pupilos nipônicos campeões olímpicos. A LSM era uma entidade à parte, com suas próprias competições. Com a aproximação do Sul-Americano de 35, a CBD e as Ligas carioca e paulista tiveram que acomodar os desejos de escalação da LSM, detentora dos melhores nadadores.


Mas as vitórias brasileiras mais asseguradas estavam nas mãos de nossas moças. Sendo aquele o primeiro Sul-Americano feminino, seu nível competitivo ainda era bastante rudimentar. A competição era basicamente entre brasileiras e argentinas. A pioneiríssima Maria Lenk, única veterana, no continente, de Los Angeles, onde tinha ficado na lanterna em todas as provas, era a liderança incontestável no nado de peito. Neste estilo, que ela foi aperfeiçoando e transformando, dentro das regras estipuladas, sua trajetória de melhora de tempos, até o recorde mundial dos 200m e 400m, em 39, e o quase recorde mundial dos 100m, em 40, nunca viu competidora à altura por nossas bandas. A reboque de Maria Lenk vinham as outras nadadoras brasileiras que prometiam conquistar medalhas de prata e bronze, e derrotar, em grupo, as argentinas que eram dependentes demais de Jeannete. Entre elas, as principais eram a menina, ou melhor, a “mignon” Piedade Coutinho, nossa futura, então, maior nadadora olímpica de todos os tempos, e a paulista Helena Sales, melhor nadadora brasileira do livre no começo de 35.


O Sul-Americano transcorreu cheio de emoções, de diversos tipos. Pela primeira vez houve eliminatórias e finais, no esquema antigo de classificação por colocação e tempo. Foram dezoito recordes continentais batidos. Muitas das provas foram disputadíssimas, ou renhidas, como a imprensa gostava de adjetivar. No masculino, quase todos os ouros brasileiros saíram por batida de mão, como nos 100m e 200m costas, com Benevenuto batendo o favorito e último campeão, o peruano Daniel Carpio. A grande estrela do torneio foi Manoel Villar, que ganhou os 200m, 400m e 800m livre. Manoel enfrentou sozinho os velocistas e fundistas argentinos, dos 100m aos 1500m.


Durante toda a semana do torneio, o Brasil ficou perseguindo de perto a Argentina na pontuação, tanto no masculino como no feminino. Mas perdemos todos os revezamentos para eles, inclusive o 4x100m livre feminino, no qual Helena Sales, fechando para o Brasil, foi ultrapassada nos últimos dez metros por Jeanette. No final, viramos o jogo no feminino no último dia, levando o primeiro título desta categoria, mas sucumbimos à superioridade portenha no masculino e no geral. Com exceção do Sul-Americano de 41, nossa hegemonia no continente só se fez valer a partir do final da década de 50, já nos anos de Manoel dos Santos. Mesmo assim, outros percalços retornariam na década de 60. Até aquela época os argentinos quase sempre foram melhores do que nós. 


Um incidente peculiar se arrastou durante toda a semana do Sul-Americano. Na final dos 100m livre, a prova clássica da natação, os primeiros quatro nadadores bateram praticamente juntos. Manoel Villar e o argentino Guillermo Panelo marcaram 1m2s8. Passado um certo reboliço inicial, o juiz de chegada deu vitória para Panelo. Choveram chapéus e outros projéteis na direção do juiz e a gritaria e os apupos foram amedrontadores. Todos juravam ter visto Manoel bater na frente. Dada a pressão, o comitê diretor resolveu rever a decisão. Qual não foi a surpresa geral quando a resolução foi anunciada. Na melhor tradição sul-americana, o comitê optou por desclassificar os dois nadadores. Ninguém teria ganho a prova. Dados o ridículo da solução e o inconformismo de todos, inclusive da imprensa, uma nova reunião do comitê foi marcada para o dia seguinte.


Falavam em um swim-off entre os dois nadadores, mas os argentinos estavam relutantes em conceder a redisputa. Na nova reunião mantiveram a decisão da desclassificação dos nadadores. A Liga de “Sports” da Marinha publicou uma nota de protesto. O mal-estar permaneceu até o fim da competição. O Brasil, que vinha pouquíssimos pontos atrás da Argentina, se distanciou um pouco da líder, no último dia de provas. De repente, quando o ambiente já era de confraternização de fim de campeonato e a diferença de pontuação entre os dois países era larga o suficiente, foi anunciada a última das últimas das decisões sobre os 100m livre. Sob a direção do argentino Mario Negri, o mais importante cartola natatório sul-americano das décadas de 30 e 40, o comitê finalmente tinha se dado conta que Manoel Villar era o medalha de ouro dos 100m livre.


A derrota brasileira em casa gerou os costumeiros artigos na imprensa reclamando maiores investimentos nos nossos clubes, piscinas e profissionais técnicos. Há oitenta anos o diagnóstico não era muito diferente da avaliação atual. Por outro lado, nossa hospitalidade e apreço por festa sempre estiveram presentes. Depois do campeonato em 35, a Liga da Marinha convidou todas as delegações para um belo passeio pela baía de Guanabara, em barca especial da Cantareira, com direito a banda jazzística do Regimento Naval e um animado programa de sambas e marchas carnavalescas, assim que levantaram âncora no Cais Pharoux.

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