O vírus continua por aí, mas, apesar do grande número de tragédias pessoais que continuam decorrendo de sua presença, na perspectiva dos mercados financeiros trata-se de notícia velha. Os supostos avanços no desenvolvimento de vacinas, e o vai e vem dos ajustes operacionais em todos os lugares para o funcionamento dos diversos segmentos da economia, são os derivados da pandemia que agora alimentam o noticiário, porém, com impactos de volatilidade relativamente pequenos e efêmeros. O fato é que, apesar do cataclisma do advento do vírus na economia global, e do quase um milhão de mortos, em comparação com o começo de 2020, os mercados financeiros indicam hoje preços muito mais altos para muitos dos seus ativos, de forma que, no consolidado, segundo este termômetro, olhando-se para o futuro a vida melhorou no período. Além disto, ou explicando isto, a volatilidade, como no caso refletido pelo comportamento do índice do medo, o VIX, que reflete o risco percebido das ações das empresas americanas, vem caindo. Mas o que será que anda acontecendo?
Pelo lado real, as economias nacionais, de forma consolidada, ainda operam em patamares bem mais baixos do que há nove meses. Mas, na força do argumento de quem defendesse o desempenho recente dos mercados financeiros, o primeiro ponto seria que os preços dos ativos refletem a expectativa de desempenho no futuro, e não no presente. O segundo ponto deixaria claro que o movimento forte de valorização de ações se concentrou nas empresas de tecnologia, representantes deste futuro. Tal racionalização asseveraria também que o custo de capital despencou, junto com os juros, e que a inflação é morta. E para arrematar seria apontado que a estimativa de receitas futuras das grandes empresas de tecnologia, as que mais se valorizaram no período, como Apple, Amazon e Facebook, se tornaram menos incertas.
Não se deve brigar com as tendências nos mercados financeiros. Pelo contrário, deve-se considerá-las com muito respeito. Normalmente, cabeças consideradas talentosas e que tiveram algum sucesso no passado apostando contra uma tendência de mercado, provam-se equivocadas em uma próxima vez. Quem então acaba acertando algo nesta linha tende a não ser quem já adquiriu a fama de ser um sábio contrarian. É apenas o próximo famoso que acerta. Mas depois, no marketing do gestor ou do investidor, é outra história. Porque aí foca-se nos acertos e esquiva-se dos desacertos. Ou, mais precisa e “sofisticadamente”, foca-se nos acertos e, junto, vende-se uma humildade de quem também comete desacertos, só que estes últimos rapidamente corrigidos e de dano muito menor que os acertos.
Dois pontos talvez não têm sido costumeiramente abordados em se tratando de explicação do desempenho recente dos mercados de ativos financeiros. O primeiro, já um pouco conhecido, é que, desde os anos 90 no Japão, e a partir de 2008 nos EUA e Europa, a credibilidade do perigo iminente decorrente do déficit fiscal, da dívida pública, e da emissão de moeda vem se desmanchando. Como a inflação de produtos e de consumo nunca vem, os Banco Centrais, e depois os Governos e seus Tesouros, foram adquirindo esta “licença para matar”. Até o Brasil, com seu frágil histórico, também quer entrar na festa. O resultado é que há um cara grandão que está sempre sustentando a curva de juros, comprando até título de crédito privado, e também criando demanda real, com impacto tanto no custo de capital, que é mantido no seu nível mais baixo, como nas receitas corporativas, que são fortalecidas.
Já um segundo ponto, estrutural, se traduz em uma outra reserva de sustentação para os ativos financeiros. Muitos anos se passaram deste a primeira vez que Larry Summers fez menção ao savings glut, uma espécie de fartura de poupança disponível. Acontece que frente `as possibilidades de investimento, retorno esperado e risco, tem muita gente rica neste mundo que não quer dor de cabeça, ou nem sequer fazer o mínimo de dever de casa. Apesar da ascensão de muitos, como se vê no Brasil hoje, ao status de investidor de bolsa, tem tanta riqueza por aí, decerto detida de forma concentrada, que outros muitos se satisfazem “investindo” por exemplo em um título do governo alemão de dez anos que paga uma taxa negativa nominal de quase 0,5% ao ano. Investe 1000 pra receber menos de 950 daqui dez anos. Mesmo no mercado americano, supostamente mais ávido pela alocação racional, os títulos do governo pagam um retorno real esperado negativo. Why bother?.. Assim também é que os títulos de crédito nunca estiveram tão caros para o investidor, afetando tudo mais, no mesmo sentido.
Trata-se de óbvia inflação de ativos. Vai parar? Não necessariamente. Geralmente as patologias necessitam de um baita overshoot antes de começarem a ser corrigidas. Até lá, pode, inclusive, ser tarde demais para se evitar algo mais sério. But who knows? O que sabemos é que esta valorização de ativos caminha no sentido de piora de desigualdade de renda/riqueza. Por sua vez, ainda mais em tempos de vida intensamente digital e de conteúdo de mídia pulverizado e não institucionalizado, temos hoje a realidade da política radicalmente dividida. Afora as contestações de resultados eleitorais, temos 50,1% da população que vota no vencedor eleito e 49,9% da população que odeia o vencedor eleito. E depois, durante o mandato do vencedor, isto ainda se intensifica.
Bom, isto não parece auspicioso, por certo é uma outra longa história, mas não deixa de estar conectada com o desempenho dos mercados financeiros. Só que uma análise de risco de um ativo financeiro que considerasse a dinâmica política haveria de não achar o futuro tão pouco incerto. Ou será que a política se tornará irrelevante perante a tecnologia?
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