FE - Securitização e minha residência
- Pedro Junqueira
- 28 de set. de 2020
- 6 min de leitura

Desde tempos imemoriais o Brasil não tem um modelo suficientemente crível de financiamento imobiliário. Os juros finalmente abaixaram, o mercado de capitais avançou, chegamos a criar e desenvolver um veículo correlato de sucesso respeitável, o FII, mas o financiamento imobiliário continua em uma mistura de limbo e empolgação precipitada, praticado de forma híbrida, mais para uma salada, do jeito arbitrário que a realidade das opções se apresentam.
Olhando para o financiamento imobiliário em termos de crédito, o que temos hoje? Temos a eterna fonte cambaleante da caderneta de poupança, esta herança anacrônica, e talvez pré-histórica do ponto de vista do desenvolvimento da alocação de investimentos. Temos o incerto FGTS. Temos a inextinguível determinação do concentrado setor bancário de reter para si este business, mas muito mais pela cultivada isenção fiscal que barateia em múltiplas formas sua captação do que por uma suposta capacidade diferenciada de emprestar para o setor imobiliário. E temos as incorporadoras e construtoras se extendendo em suas competências e atuando como credoras financeiras como forma de viabilização de seu negócio real, o de construir e vender imóveis.
Em paralelo, temos o mercado de capitais chegando junto, com destaque para as operações de securitização, mas estas ainda focadas no segmento corporativo, ou dependente do reforço de crédito corporativo, e timidamente expostas ao devedor pessoa física, o que ocorre mais em segmentos onde ninguém mais quer se envolver. Além disto, como mais um suposto beneficiário do uso do truque da isenção fiscal para o investidor pessoa física, nosso principal mercado de securitização imobiliária fica por demais limitado à dimensão deste segmento investidor.
Uso então este post hoje para uma breve leitura de como ocorre o financiamento imobiliário onde este é desenvolvido, nos Estados Unidos. Pois lá, do jeito deles, há algumas décadas o mercado de securitização se tornou o sustentáculo deste segmento. Lá, uma longa história, envolvendo principalmente duas empresas, a Fannie Mae (Fannie) e a Freddie Mac (Freddie), resultou em um amplo e líquido mercado de hipotecas e de securitização imobiliária, caracterizado, entre outros, pelo acesso fácil, prático e barato a funding de longo prazo para aquisição de residência para a classe média e a classe de renda mais baixa.
Nos EUA um financiamento imobiliário de aproximadamente 800 mil dólares pode ser rapidamente contratado, por um prazo de 30 anos, a um custo de menos de 3% ao ano, por um recém-formado profissional cuja única renda, em base anual, gire em torno de menos de um oitavo do valor do financiamento. Como é possível isto?
A Fannie e a Freddie, que nasceram há muito tempo como instituições estatais, já foram privatizadas, quando se iniciou o mercado de securitização, há várias décadas, e foram depois, na crise de 2008, salvas pelo governo e retomadas sob sua proteção. Hoje há quem queira reprivatizá-las. Depois que receberam infusão de capital do governo, há mais de dez anos, voltaram a se tornar rentáveis, retornando boa parte daquele capital investido.
Perto de metade de todas as hipotecas americanas são adquiridas pela Fannie e a Freddie, que se financiam, em grande parte, através de emissões dos seus MBS (Mortgage-Backed Securities), que são títulos de securitização. O modelo de financiamento imobiliário americano se expandiu com a Fannie e a Freddie adquirindo carteiras e emitindo seus MBS, lastreados nestas carteiras, para se financiarem, ao mesmo tempo em que garantiram o pagamento pontual de todo o fluxo de principal e de juros dos financiamentos imobiliários componentes destas carteiras. Estas empresas, mesmo quando privatizadas, sempre gozaram de relação especial com o governo, em função dos seus mandatos. Estes determinam que a Fannie e a Freddie provejam liquidez e estabilidade no mercado secundário de hipotecas, além de financiamento habitacional para as classes menos privilegiadas. A Fannie e a Freddie são chamadas, assim, de GSE (Government-Sponsored Enterprises). Quando este status foi testado em 2008, na crise, por ocasião de prejuízos falimentares, nenhum investidor de MBS destas empresas perdeu dinheiro por conta de inadimplência.
Assim, o que acontece em relação a estes MBS emitidos por estas duas empresas, os Agency MBS, que são lastreados em carteiras de financiamento imobiliário que compõem Trusts, é que não são percebidos como títulos com risco de crédito. São títulos com riscos decorrentes apenas de movimentos na curva de juros e de pré-pagamento. Desta maneira, investidores institucionais, em grandes montantes, investem em Agency MBS que rendem apenas algumas dezenas de pontos base acima da rentabilidade de títulos do governo federal de prazo compatível. Este estreito spread é o suficiente para atrair somas vultosas de institucionais e, assim, viabilizar parte substancial do financiamento imobiliário nos EUA. O custo do tomador do financiamento, por sua vez, é apenas mais algumas dezenas de pontos base acima da rentabilidade dos Agency MBS, o suficiente para pagar também um fee para o servicer, imbuído da cobrança, e um outro fee para as GSE.
Fundamental no modelo americano é a exigência de enquadramento dos financiamentos imobiliários adquiríveis pelas GSE. Para minimizar o risco de crédito garantido por estas empresas, somente são adquiridos por estas os financiamentos imobiliários que atendam determinados critérios, como, por exemplo, valores máximos, percentual máximo de valor vis-à-vis a garantia, renda disponível do devedor, tipo de uso etc. Outro aspecto relevante histórico para o sucesso do modelo americano sempre foi o benefício disponível para o devedor do financiamento imobiliário de poder deduzir o custo dos juros deste financiamento de sua renda tributável.
Em uma analogia imperfeita, voltando para o Brasil, seria como historicamente o nosso velho BNH tivesse se transformado em uma empresa que securitizasse carteiras de crédito imobiliário, emitindo títulos com risco equivalente ao risco de título de governo e rentabilidade superior a destes. Um modelo destes depende de muitos outros aspectos de desenvolvimento econômico e institucional, como nível de renda, estabilidade monetária, prática da Justiça etc. Mas a importância do setor imobiliário no desenvolvimento econômico de um país clama por soluções à altura, o que explica toda a trajetória das GSE. Se bem executado, mesmo levando-se em conta os custos em período de incidência anormal de risco de mercado, como ocorreu em 2008, tal modelo pode gerar benefícios líquidos enormes. Pois tais benefícios decorrem também das externalidades positivas, através da alta penetração de residências próprias e de suas consequências diretas e indiretas em prol do crescimento econômico mais amplo no país.
O mercado de Agency MBS, com seu desenvolvimento, resultou também em uma expansão de mercados de produtos estruturados derivados. Por exemplo, o mercado dos Strips, que separam as partes do fluxo de caixa dos Agency MBS, como os IOs (Interest Only) e os POs (Principal Only). São produtos que atendem demandas específicas de perfil de fluxo de caixa, de duration e de risco de investidores. Além disto, os Agency MBS fazem parte, como lastro, de outras carteiras securitizadas.
A evolução do mercado de Agency MBS acabou por também contribuir com a expansão do mercado de securitização imobiliária private-label, aquele que não envolve as GSE. Este segmento é comparável em perfil de risco às operações do mercado de securitização imobiliária no Brasil. Nestas operações está presente, de forma protagonista, o risco de crédito. Os créditos que compõem as carteiras destas operações não precisam necessariamente de atender critérios de enquadramento similares àqueles aplicados às carteiras adquiridas pelas GSE. Em se tratando de carteiras-lastro pulverizadas, estas operações se utilizam de reforços de crédito estruturais e do fatiamento de seu passivo em classes distintas de investidores, com senhoridade regulada entre estas.
Ou seja, guardadas as proporções e os níveis de desenvolvimento, o mercado de securitização imobiliária no Brasil é equivalente ao mercado de securitização americano, mas só que excluindo as operações das GSE. Mas as operações das GSE são o motor do mercado de financiamento imobiliário americano. Ou seja, não temos justamente aquilo que explica o modelo e o sucesso do financiamento imobiliário americano, que se fundamenta no mercado de securitização. Mas também não temos nada mais que substitua este vazio. É aquí que estamos.
Concluindo, no Brasil não avançamos no desenvolvimento do financiamento imobiliário pela opção via intermediação bancária, e não temos coragem de buscar algo mais audaz pela opção de securitização. Há muito o que se dizer tanto do primeiro tipo de desempenho pífio quanto do segundo tipo de limitação. Mas há também o que se comentar sobre alguns aspectos auspiciosos, o principal deles dizendo respeito às possibilidades de avanço, apesar de tudo, por conta do uso crescente atualmente da tecnologia. Fica tudo para o próximo post.
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