top of page
logo_semfilete_edited.png

Do limão à limonada

  • Foto do escritor: Pedro Junqueira
    Pedro Junqueira
  • 9 de set. de 2020
  • 9 min de leitura

Atualizado: 9 de set. de 2020


Seguindo abaixo com a vida de Tetsuo, pausada semana passada:

... O sucesso inédito no Pan de Buenos Aires alcançado por Tetsuo fez surgir aquela inclinação de se premiá-lo, de alguma forma adicional, além das medalhas. Em tempos de valorização da pureza amadorística, qualquer menção a uma recompensa material era sinônimo de pecado e crime. Em Buenos Aires, terminadas as competições, levaram Tetsuo a um restaurante e sua performance foi celebrada com um bom prato com direito a bife. Bem melhor que as refeições de caserna que o alimentaram durante o torneio.

Em Marília, a comunidade japonesa quis presenteá-lo com um carro novo, o qual não pode ser aceito por Tetsuo, caso contrário Helsinque se tornaria uma inviabilidade. Nesta época, o jovem nadador santista, Haroldo de Mello Lara, grande velocista do nado livre nos anos 50, foi contratado pelo Fluminense por meia dúzia de contos de réis. Ameaçaram excluí-lo das competições por conta do dinheiro “sujo”, e o que o salvou foi a alegação de que ele não sabia o que fazia por ser menor de idade. Eram tempos em que Speedo mal passava de um nome de um desconhecido fabricante local australiano.


Tetsuo seguiu em frente. Três semanas depois do Pan ele dizimou o recorde sul-americano dos 400m livre, na piscina do Fluminense, marcando 4m41s5. O recorde continental desta prova nunca havia sido conquistado por um brasileiro, desde seu primeiro registro. Apenas dois portenhos tinham tomado posse desta prova na tabela de recordes, desde sua concepção. Primeiro, Alberto Zorilla, de 1924 até 1939, e depois, Durañona, de 1940 até 1951. No Brasil, o recorde nacional, até então, havia pertencido ao nadador de multidistância Aram Boghossian, do Tijuca Tênis Clube, com o tempo de 4m50s3.


Reta Final Antes de Helsinque


Um ano depois, em março de 1952, chegou a vez do Sul-Americano de Lima, no Peru. Para variar, foi mais uma vitória de equipe da Argentina, a nona, contra somente uma do Brasil até então. Mas nas provas de longa distância no masculino, pela primeira vez o domínio total foi brasileiro, e em dose dupla. E pela primeira vez também, desde Manoel Villar em 1935, um brasileiro conseguiu três medalhas de ouro individuais. Seu nome, claro, era Tetsuo Okamoto. Logo atrás dele, fazendo dobradinha nos 400m, 800m e 1500m, seu grande adversário nacional, o carioca tricolor Sylvio Kelly dos Santos. Os dois fundistas levantaram o perfil e a moral dos brasileiros no cenário sul-americano, e a rivalidade entre os dois resultou em bem-vindas melhoras adicionais nos meses finais que antecederam a olimpíada naquele ano.


No final de maio de 1952 Sylvio Kelly quebrou o recorde sul-americano dos 800m e 1500m livre, neste último trazendo a marca para 19m07s9. Tetsuo tinha ido para Marília e desatado a treinar. Em maio, também, ele quebrou a marca sul-americana da distância de 500m, recorde este que era oficialmente registrado e acompanhado pelas federações nacionais e sul-americana. Lá pelo começo de julho bateu uma onda invernal em Marília e a temperatura da água da piscina do Yara Clube despencou para 12 graus. Tetsuo forçou a barra e tentou manter os treinamentos. Mas logo a garganta apitou e vieram os sintomas de um princípio de resfriado. A uma semana da viagem para Helsinque, Tetsuo, sem ter alternativa melhor, se afastou da piscina.


O novo recorde dos 1500m, às vésperas da olimpíada, redirecionou as luzes dos holofotes para Sylvio Kelly. Tetsuo partiu para Finlândia na nova condição de underdog. O peso menor nas costas deve ter facilitado psicologicamente, mas não muito. Afinal de contas ele não poderia ter apagado da memória seu status de bicampeão pan-americano e tricampeão sul-americano. Não há modéstia que se sobreponha ao orgulho e a auto-estima de um nadador tão premiado. Mas, mesmo assim, Tetsuo tentou manobrar o peso de suas próprias expectativas e o resfriado serviu de justificativa. No seu jeito simples, ele sempre declarou que partiu pra olimpíada satisfeito por, meramente, participar.


Hora Olímpica


Ao desembarcar no verão finlandês, o jogo psicológico das expectativas tomou direção reversa na cabeça de Tetsuo .Vendo-se forte e saudável e constatando que a prova dos 1500m livre, a última do programa, ainda estava a duas semanas na frente, ele retomou com intensidade os treinamentos, em plena semana pré-olímpica. O conceito, para um fundista da década de 50, era chegar na competição treinado, e não polido. Ao ter dado suas primeiras braçadas na piscina olímpica aquecida, em Helsinque, e sentido sua capacidade aeróbica começar a voltar, Tetsuo deve ter liberado sua fome de competidor e ali, encarando os ladrilhos, sonhado: “Quem sabe eu vou mais alto …”. Em contrapartida, a ansiedade aumentou.


No terceiro dia de competição foram disputadas as eliminatórias dos 400m livre. Tetsuo levantou a moral da tímida delegação brasileira, e de todos os latinos em geral, vencendo a sétima série, com o tempo de 4m46s1 (perto do seu melhor tempo em piscina de 50m). Vinte e quatro nadadores passaram para as semis. No dia seguinte, na terceira série das semis, Tetsuo ficou em quarto lugar, com 4m46s2, e não conseguiu se classificar para as finais. Em terceiro lugar nesta mesma série, com o tempo de 4m44s2, ficou seu velho conhecido, o Peixe-Voador Furuhashi, que, por sua vez, pegou a oitava e última vaga para a final.

A prova dos 400m livre acabou sendo vencida, na final do dia seguinte, pelo francês Boiteux, cujo pai se atirou dentro d’água, de roupa e tudo, para abraçar e beijar o filho. Tetsuo, da prova, ganhou experiência se familiarizando com a sua condição e com o poder de fogo de seus adversários. Mas, acima de tudo, ele ganhou raiva, confessada muitas vezes depois. Com ele a raiva funcionava e, ao mesmo tempo, tirava de jogo aquela falta de ambição daqueles que entram para empatar.


Vieram os 1500m livre. Tetsuo novamente venceu sua série eliminatória, com o tempo de 19m05s6, novo recorde sul-americano. Sylvio Kelly ficou em quarto lugar na série dele, com 19m26s8. O primeiro se classificou para as finais com o quarto tempo geral. O último ficou de fora, por muito. Também eliminado foi o francês Boiteux, ganhador do ouro nos 400m, com o tempo de 19m12s3. Prova apertada, com todos os finalistas nadando abaixo do recorde olímpico. O único a se distanciar do bolo nas eliminatórias foi o outro conhecido de Tetsuo, o Peixe-Voador Hashizume, classificado em primeiro lugar com o tempo de 18m34s0.


Naquela altura, todas as expectativas e esperanças se voltaram para o Tetsuo. Não haveria qualquer truque psicológico possível para fugir da responsabilidade. Entre as eliminatórias e a final dos 1500m livre houve um dia de descanso. Na primeira noite, Tetsuo dormiu bem. Melhor foi assim, porque, como sabe qualquer maratonista, entre dormir mal na última ou penúltima noite antes da prova, é sempre melhor na última. De fato, na noite do dia 1 para o dia 2 de agosto de 1952, na vila olímpica de Helsinque, Tetsuo não dormiu. Willy Otto Jordan, no papel de chefe da delegação brasileira, passou a noite inteira conversando e acalmando nosso grande fundista.

Tetsuo ao centro e Willy Otto à esquerda

A Final dos 1500m


A performance de Tetsuo na final dos 1500m, sem registro em filme, requer uma análise minuciosa. Nas raias centrais nadaram Hashizume e Ford Konno, o nipo-americano medalha de prata nos 400m livre. Tetsuo, ao lado, na raia 6, se empolgou e saiu exageradamente forte. Ele aguentou firme, quase no pé de Hashizume e cintura de Konno, até os 400 metros. Esta sua passagem, em 4m48s2, foi assombrosa, apenas dois segundos mais lenta que o seu melhor na prova dos 400m. A partir daí, suas parciais começaram a abrir para 1m15s, 1m16s, 1m17s, 1m18s e chegaram até 1m19s. Foi a tentativa de recuperação do fôlego, gasto em excesso no começo.

Hashizume e Konno abriram em cima de Tetsuo e estabeleceram um grande embate entre eles, com Hashizume liderando até os 1200 metros e Konno roubando a liderança a partir daí. Logo atrás de Tetsuo, um bloco de três nadadores vinha disputando a quarta colocação, liderados pelo americano Jim McLane, medalha de ouro na prova em Londres, em 1948. Na altura dos 600 metros a diferença entre Tetsuo e McLane chegou a ser de 6 segundos. A partir dali, a diferença começou a cair, com McLane mantendo estável suas parciais perto de 1m16s. Na passagem dos 1100 metros McLane alcançou Tetsuo.

A gritaria na beira da piscina aumentou. Willy Otto, em algum momento, ensandecido com a ameaça do americano, apostou cem dólares (mais de mil dólares em valor presente) em Tetsuo, com Bob Kiphuth, técnico olímpico americano e técnico de McLane em Yale. A baixada de bola, ou ritmo, de Tetsuo, começou finalmente a surtir efeito e o brasileiro e o americano nadaram juntos os próximos duzentos metros, com parciais abaixo de 1m17s. Mas, dos 1300m aos 1400m o americano nadou abaixo de 1m16s e abriu seis décimos em cima de Tetsuo, que, a esta altura, todo mundo imaginava bufando pra fora seus pulmões. 


Não se registraram as respectivas passagens nos 1450 metros, mas quem estava lá confirmou Tetsuo virando atrás de McLane. O próprio Tetsuo contou que só teve uma visão clara de sua posição relativa no momento da virada. O que se passou então é extraordinário.

Supondo que Tetsuo teve forças para uma melhora repentina de ritmo a partir da passagem dos 1400 metros, nadando assim os 50 metros seguintes em 37 segundos, a sua parcial final assustadora de 1m11s1 nos leva a concluir que, depois de perceber McLane na frente na virada dos 1450m, ele disparou para fechar os últimos 50 metros em 34s1. Tal performance inusitada, com um ritmo de fechamento de ambos nadadores jamais visto numa olimpíada antes, garantiu nossa primeira medalha olímpica na história da natação, por dois décimos de segundo, e um novo recorde sul-americano de 18m51s3.

Este recorde duraria dez anos. A medalha conquistada seria uma de um total de três medalhas brasileiras, em todos os esportes, em Helsinque. Mais virtuoso do que vencer ali foi cair, se levantar, e ainda se superar brilhantemente com o bronze. Tetsuo se recuperou do erro inicial e nos deixou o legado da “vitória” na hora que mais importa, tão rara no nosso histórico. Um bronze que vale mais do que mil quartos lugares.


Confira abaixo as passagens dos quatro primeiros, a partir dos 500 metros:

De uniforme da nossa canarinho emprestado, Tetsuo foi para a cerimônia de medalha feliz da vida. Do outro lado do pódio, na mesma altura, um dos Peixes Voadores que tinham contribuído para a mudança radical de treinamento do provinciano Tetsuo, lá do outro lado do mundo, em Marília. A foto dos três nipônicos no pódio não deixa de ser uma homenagem a uma nação, derrotada e humilhada na guerra e em processo de perda da hegemonia na natação mundial.


Da esq. para a dir., Hashizume, Konno e Tetsuo

Os Anos nos Estados Unidos


Depois de Helsinque, Tetsuo viajou com a delegação brasileira masculina competindo em vários países europeus. Foi a penúltima vez que defendeu as cores do Brasil. No retorno da olimpíada, encarando a realidade crua do esporte amador da época, nosso primeiro medalhista olímpico, aos 20 anos de idade, foi morar em São Paulo e perdeu seu único patrocínio que tinha então, o chamado “paitrocínio”. Seu pai fez o que era normal. Parou de sustentá-lo e mandou o filho começar a trabalhar. Nesta época, Tetsuo optou por dar suas braçadas diárias no Tênis Clube Paulista, lá na Rua Gualachos, como era chamada, sob a orientação do novo técnico do clube, o Paraíba, ex-fundista campeão e causa motivadora no início da carreira de Tetsuo.


Mas o trabalho e os estudos acabaram por deixar os treinos em segundo plano. Como alguns fundistas em fim de carreira e sem carga de treinamento, Tetsuo ainda tentou competir como pseudo-velocista. No Sul-Americano de 1954, no Pacaembu, vencido finalmente pelo Brasil, mas um campeonato apagado devido à ausência dos argentinos, Tetsuo ficou em quarto lugar nos 100m livre e ganhou as provas de revezamento livre. Logo depois, um amigo peruano que estudava nos Estados Unidos lhe mostrou o caminho para o ingresso numa universidade americana.


Tetsuo foi estudar engenharia e geologia no Texas Agricultural and Mechanical College (Texas A&M). Lá nos States, ele voltou a treinar com mais afinco, aproveitando o modesto conforto material da sua situação e a piscina aquecida da escola. Defendendo os Aggies, nome de guerra da universidade, entre 1956 e 1958, Tetsuo foi várias vezes finalista nos campeonatos universitários nacionais e regionais americanos.

Deparando-se com o sul racista dos Estados Unidos dos anos 50, Tetsuo se viu protegido pela condição de melhor nadador da escola e, na hora de entrar no banheiro, escolhia a porta com a placa escrito “Brancos”, ao invés da outra escrito “Negros”. Já quando foi competir na Califórnia, ele se viu sem saber o que fazer, encafifado com a diferente placa referente aos discriminados, onde estava escrito “Coloridos”, e não mais “Negros”.


Notas no final de nosso grande...


Sua carreira de nadador não foi além dos anos universitários no Texas. Duas décadas depois, em 1977, o Pinheiros o convidou para uma viagem ao Japão, para exercer uma função de diplomata senior da equipe paulistana competindo naquele país. Tetsuo descobriu contente que os japoneses ainda se lembravam dele. A estadia dos Peixes Voadores no Brasil e em Marília ainda era rememorada com carinho.


Nos últimos anos de vida, Tetsuo teve que lidar com a hemodiálise. Ele sempre recebeu visitas do Paraíba, Willy Otto e Manoel dos Santos. Os dois primeiros, octogenários, que já eram veteranos quando Tetsuo começou a brilhar, prestaram a última homenagem com palavras tenras, durante o enterro do nosso medalhista olímpico pioneiro, em 2007, que faleceu aos 75 anos de idade.

Aqueles últimos 50 metros em Helsinque nos proporcionaram muito mais que o lucro de 100 dólares do Willy Otto em cima do legendário técnico americano.

Comments


bottom of page