Da guerra e seguindo em frente
- Pedro Junqueira
- 19 de ago. de 2020
- 8 min de leitura

Em 2008, em duas longas e prazeirosas conversas telefônicas, Willy Otto Jordan, 87 anos, em Miami, eu em Washington, muito do conteúdo deste texto foi revelado. Willy Otto, nosso grande nadador dos anos 40, soava como pura energia, empolgação e interesse. Me informou que nadava diariamente. Como Maria Lenk e João Havelange, se tornaria em breve um nadador nonagenário. De fato viveu um bocado ainda. Há poucos meses, por um triz quase centenário, Willy Otto nos deixou... Abaixo, na sequência do post da semana passada, segue a segunda parte de seus tempos.
... A viagem do selecionado sul-americano pelos Estados Unidos foi intensa. Foram perto de 20 cidades, das Carolinas até Chicago, em Illinois, passando por Nova Iorque e Massachusetts. Na Big Apple os nadadores receberam a chave de ouro da cidade das mãos do legendário prefeito que ajudou Nova Iorque a sair da depressão e enfrentar a guerra, o ítalo-americano Fiorello LaGuardia.
Em New Haven, na Universidade de Yale, Willy Otto recebeu um daqueles convites que são o sonho de muitos dos nossos melhores nadadores até hoje. Bob Kiphuth, o treinador de Yale e da seleção americana, chamou Willy Otto para integrar o time da universidade com bolsa de estudos e pacote completo. Yale, além de possuir imenso prestígio acadêmico, era a meca da natação universitária americana. E Bob Kiphuth era o papa dos treinadores, de uma geração anterior à de Doc Counsilman e George Haines. Ele comandou a equipe americana masculina em várias olimpíadas e, em uma delas, a de Londres em 48, seus atletas ganharam todas as provas.
Mas Willy Otto não pôde aceitar o presente. No nosso Brasil de 1942, Getúlio começava a sair de cima do muro e apoiar de vez os aliados na guerra. Os alemães e descendentes, residentes no Brasil, foram postos na berlinda. O pai de Willy Otto sofreu pressão para tirar seu nome da gerência de sua empresa e a solução encontrada foi nomear para o posto o filho, trazido de volta dos Estados Unidos. Algum tempo depois, o melhor clube paulistano de natação, o Germânia, se viu obrigado a fundir com outro e mudar de nome, donde veio a nascer o Esporte Clube Pinheiros. Neste interim, Willy Otto foi barrado na porta e ficou seis meses proibido de frequentar as dependências do clube.
Mesmo com estes contratempos, ele ainda teve um começo de ano de 1942 prolífico em recordes. Em março e maio daquele ano ele abaixou um pouco as marcas sul-americanas dos 100m e 200m peito e igualou seu melhor tempo nos 100m livre, 59s7, outra vez na piscina do Libanês.
Os anos finais da guerra, agora com a participação dos nossos pracinhas a partir do meio de 1944, chegaram a afetar até o clima de motivação dos nadadores brasileiros. Sem ainda a perspectiva de um novo campeonato sul-americano à vista, quiçá uma olimpíada, a bateção de recordes secou. Com exceção de alguns recordes do costista Paulo Fonseca e Silva em 1944, não houve nenhuma nova marca continental para os brasileiros num período de quase quatro anos até o começo de 1946.
Quanto aos argentinos, houve menos arrefecimento. Em setembro de 1943 eles tomaram de volta o recorde dos 4x100m livre e, em julho do ano seguinte, eles quebraram a barreira dos 4 minutos naquela prova de equipe, com o tempo de 3m58s4. Na equipe portenha recordista nadavam os dois líderes incontestes do nado livre na América do Sul, José Maria Durañona e Alfredo Yantorno. Este último, no mesmo julho de 44, passou a ser o novo recordista sul-americano dos 100m livre, com a marca de 58s7. E o pior que, nos 100m peito, o grande adversário de Willy Otto durante toda a década de 40, o argentino Carlos Espejo Pérez, também havia abaixado o recorde para 1m09s6. Nunca mais Willy Otto recuperaria o status de recordista nesta prova, apesar de várias vitórias contra Pérez em competições futuras.
Willy Otto casou, assumiu as responsabilidades na empresa do pai, mas continuou a nadar seus dois mil metros diários, às 6h da manhã, ou mesmo no fim da tarde, nos horários em que o técnico Sato estava presente, no Pinheiros, na Escola Rio Branco ou na Faculdade de Medicina. Apesar de que treinasse quase somente no nado livre, na segunda metade da década de 40 Willy Otto se sobressaiu como peitista. Seguindo os passos de Maria Lenk, seu nado de peito era mais um butterfly. Com o tempo e o amadurecimento do estilo, a braçada por cima passou a ser executada não somente perto da virada, mas também em quase toda a extensão da prova, com a exceção da saída. Antes do advento da regra da filipina, podia-se, e usava-se, nadar o peito submerso na saída, até o fôlego aguentar e não comprometer o restante da performance. Na piscina do Guanabara, de água um pouco turva e sem a faixa de referência no fundo, não era incomum o nadador voltar à superfície na raia errada, ser desclassificado e atrapalhar o vizinho.
Depois da longa estiagem do fim da guerra, 1946 começou em plena força. Era época de mudança de geração no Brasil. Na natação feminina, o maior destaque que surgiu naqueles anos foi a tricolor carioca Edith Groba, costista de grande talento e recordista sul-americana por muitos anos. No masculino, os garotos Sérgio Rodrigues (Fluminense), Aram Boghossian (Tijuca) e Plauto Guimarães (Pinheiros) se tornaram nossos melhores velocistas no nado livre. Em abril daquele ano, o Guanabara, já de estrutura pequena demais para o tamanho do evento, sediou o primeiro Sul-Americano pós-guerra. Nesta décima edição do torneio, foi a segunda vez que atuamos como anfitriões e a segunda derrota em casa. Os veteranos Willy Otto e Paulo Fonseca e Silva venceram suas especialidades, peito e costas, tanto nos 100m como nos 200m. Mas Yantorno e Durañona judiaram de todos nas provas do livre e foram determinantes nos revezamentos vitoriosos da Argentina.
Em março de 1947 foi a vez do Gimnasia y Esgrima, em Buenos Aires, organizar o Sul-Americano. Pela primeira vez a delegação canarinho voou para uma competição internacional, sem ter que passar pelo desgaste das viagens intermináveis por terra. Willy Otto, desta vez, ficou com o ouro somente nos 200m peito, prova em que era recordista sul-americano, e o ouro dos 100m ficou em casa, no peito de seu adversário-mor e recordista sul-americano da prova, Carlos Pérez. Depois da competição, ganha pela enésima vez pelos platinos, Pérez convidou Willy Otto a viajar até Córdoba, a cidade natal dele, e competir numa espécie de duelo entre os dois para a cidade inteira acompanhar. Willy Otto não afinou, foi lá e bateu Pérez, com casa cheia. Guardadas as proporções, era o equivalente a um time brasileiro derrotar o Boca no La Bombonera.
1948 foi ano olímpico e foi também quando a CBD instituiu índice olímpico. Um mês antes da viagem, em estilo já moderno contemporâneo, os nadadores se reuniram no Guanabara para a seletiva. Até 1964 só existiu a prova dos 200m no nado de peito nas Olimpíadas. O índice de 2m45s era bastante puxado, e sem sentido, como ficou provado durante a Olimpíada. Willy Otto ficou de fora por menos de um segundo. Percebendo a única Olimpíada a seu alcance escapando de suas mãos, ele conseguiu convencer os dirigentes da seletiva a retomar os tempos dos nadadores para decidir a composição do revezamento 4x200m livre. Nesta, Willy Otto tirou seu companheiro, Plauto Guimarães, da equipe do revezamento e garantiu seu bilhete no avião de carga para Londres. E como veterano da equipe ele tranquilizou o pai da adolescente Eleonora Schmidt, nossa saltadora e integrante do revezamento 4x100m livre, possibilitando, assim, a autorização paterna para a viagem da filha.

A Olimpíada foi, como de costume, um impacto de grandiosidade na percepção de nossos nadadores, com exceção talvez da veterana de Berlim, Piedade Coutinho. As acomodações, estrutura e organização receberam todos os elogios. O único porém foi a ausência de chuveiros nos banheiros da vila olímpica. Nossos nadadores, como bons brasileiros, apareciam diariamente no vestiário com chuveiro da piscina, de sabonete e pente na mão, sob os olhares suspeitos de muitos, que concluíam haver algum tipo de doença de pele na delegação brasileira.
Houve um grande salto qualitativo na participação da natação brasileira nesta Olimpíada. Foram várias semi-finais, as duas finais de revezamento e as finais individuais de Piedade, nos 400m livre, e de Willy Otto, nos 200m peito. Deve-se levar em conta a ausência na competição dos países derrotados na guerra, principalmente os japoneses, os quais organizaram um campeonato nacional quase concomitante com a olimpíada e provaram ainda ser superiores em muitas provas. Nos 200m peito Willy Otto ganhou sua eliminatória com o tempo de 2m46s4, ficou em segundo na sua série e quarto no geral nas semi-finais com o tempo de 2m43s9, e aí caiu para a sexta posição na final com o tempo piorado de 2m46s4. “Piorei meu tempo por conta do esforço no 4x200m livre”, foi a explicação dele. Aquilo se deu muito antes do advento do condicionamento competitivo multi-provas, tão bem aperfeiçoado pelo Phelps mais de meio século depois.
De volta da Olimpíada, aos 28 anos, Willy Otto ainda perdurou em nossos pódios por vários anos. Em fevereiro de 1949, no Sul-Americano em Montevideo, vencido outra vez pelos argentinos, novamente ele conquistou o ouro nos 200m peito e prata nos 100m peito, no eterno duelo contra Pérez. Em abril daquele ano ele estabeleceu, pela última vez na vida, uma nova marca sul-americana, baixando o recorde dos 200m peito para 2m36s1, em piscina de 25m. Em 1951, nos primeiros jogos Pan-Americanos, em Buenos Aires, Willy Otto conquistou a medalha de prata, sempre nos 200m peito, deixando para trás o americano Bowen Stassforth, medalha de bronze naqueles jogos e depois medalha de prata nesta prova na Olimpíada no ano seguinte, em Helsinque.
Quando chegou em junho de 1952, hora de decidir nosso selecionado para a Olimpíada daquele ano, na Finlândia, Willy Otto se encontrava em Michigan, nos Estados Unidos, vendendo leite em pó que sua empresa fabricava. Com seu passado glorioso e sua experiência administrativa, ele conseguiu ser coroado com a função de chefe de delegação da natação brasileira em Helsinque. Suas responsabilidades foram devidamente testadas durante a viagem. A mais importante foi seu apoio crucial a Tetsuo Okamoto, nosso primeiro nadador medalhista olímpico.
Os detalhes da façanha de Tetsuo e o correspondente papel que Willy Otto exerceu naqueles dias ficam para o próximo post. Mas houve outros chamamentos de autoridade e planejamento a serem exercidos por Willy Otto. Ele organizou, para nossos atletas masculinos, uma viagem de competições pós-olimpíada, por sete países europeus. Houve nadadores que optaram por fazer um détour pela Suécia, atrás daquelas aventuras que a fama daquele país gerava e que Garrincha usufruiu alguns anos mais tarde. O resultado disto foi que Willy Otto precisou providenciar, na Alemanha, médico especialista em doenças venéreas para curar os rapazes inocentes. Mais grave foi quando houve desavença entre dois nadadores, uma faca foi sacada de um bolso e o chefe da delegação teve que intervir de forma contundente para acalmar a garotada.
A carreira completa, de um campeão pioneiro, chegava ao fim aos seus 34 anos, 22 anos depois de suas primeiras braçadas no rio Pinheiros e 14 anos após seu primeiro título brasileiro. A despedida foi em 1954, na inauguração da primeira piscina coberta e aquecida do Brasil, no bairro de Água Branca, em São Paulo. Motivado pela presença de estrangeiros convidados para a competição e do governador na platéia, Willy Otto ganhou sua última medalha de ouro, nos 50m livre, com o tempo de 27s1. Todos os oito competidores nadaram abaixo de 29 segundos. Isto significava que, para aquela época, o Brasil avançava. O recorde brasileiro dos 100m livre, que Willy Otto, como Tarzan, havia reduzido para menos de uma volta do ponteiro de segundos no relógio, iria avançar bastante, até se tornar, vejam só, recorde mundial, sete anos depois. Mas isto é outra história. Willy Otto, legado de nadador construído, dependurava sua sunga competitiva.
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